sábado, 16 de outubro de 2010

“LAUS DEI CARITAS EST”

“LAUS DEI CARITAS EST”

O Louvor de Deus é Caridade. O Louvor de Deus são atos de amor. A partir da experiência da Graça de Deus no Esplendor Litúrgico, o ser humano abre-se ao Amor de Deus, mas o Louvor de Deus se efetiva, quando cada ato do ser humano, proclama a santidade de Deus, portanto, o ato tem que brotar da graça e do amor de Deus, aí sim, o Louvor de Deus se efetiva. Abaixo, queremos definir o amor e como é o processo da exteriorização da graça de Deus em atos de amor, de Louvor de Deus.



O amor como Entrega
            O que é amar? Essa pergunta não é feita com muita freqüência. Parece que hoje todos sabem o que é amar e a palavra amor é usada a todo o momento e nas mais diversas situações. Por isso neste item, queremos refletir de forma simples, mas tentando obter uma definição clara e precisa sobre o que é amor cristão. Amor que é, como já dissemos anteriormente, a base da motivação humana e a essência da Revelação Divina.[1]
            Para analisarmos o amor de forma cristã, neste item assumimos como paradigma a Parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37), da qual tomamos o itinerário para definirmos o amor como Entrega.
Um legista aproxima-se de Jesus e pergunta o que deve fazer para “herdar a vida eterna” (Lc 10, 25). O herdar está ligado à terra prometida no cumprimento da Aliança (cf. Gn 12, 7). O acento é colocado no que fazer, na práxis para herdar a eternidade, a promessa do Altíssimo. Jesus pergunta sobre a Lei e o legista responde com amar a Deus e amar o próximo como a si mesmo, respectivamente tomados de Dt 6, 5 e Lv. 19, 18. Partimos do pressuposto de que amar é práxis permeada de eternidade. Amar como Entrega torna-se sacrifício que estabelece aliança ancorada no eterno.
            O legista levanta a questão: “Quem é o meu próximo?” (Lc 10, 29) Com esta questão, o legista queria delimitar o próximo ao israelita, e assim excluir o estrangeiro ou como doutores da lei que queriam excluir também os pecadores.[2] Essa é a deixa para que Jesus conte a parábola do Bom Samaritano. Um homem, um ser humano, é atacado, despido e ferido por bandidos, está em situação de necessidade. Sacerdote e levita vêem a necessidade, mas passam adiante, a lei não permite a impureza de tocar um morto e tornar o sacerdote e o levita impuros para o culto (cf. Lv 21, 1), a não ser que fosse um parente próximo, um irmão (cf. Lv 21, 2). Nesse ponto da narração aparece um Samaritano, considerado um mestiço e herege (cf. Jo 8, 48), mas vai ao encontro da necessidade do ser humano (cf. Lc 10, 29-33). O Samaritano sabe-se livre para amar o homem necessitado.
O Samaritano viu o necessitado, diferentemente do sacerdote e do levita, move-se de compaixão, [3] sobre as feridas põe azeite para suavizar e vinho para desinfetar, o conduz a uma pousada e cuida daquele homem necessitado. Coloca-se a disposição ao recomendar ao dono da pousada que cuide dele e recomenda “o que gastares a mais, em meu regresso te pagarei” (Lc 10, 35). O amor faz o Samaritano mover-se de compaixão, entregar-se ao cuidado do necessitado, sem se preocupar com barreira religiosa ou política. Enfim um amor que leva o Samaritano a entregar-se ao outro.


1 Amar é aliança eterna
            Marcel Mauss (1872-1950), antropólogo e sociólogo francês, na sua obra Ensaio sobre a Dádiva afirma que a dádiva forma a atmosfera na qual a vida social se desenvolve.[4] Mauss parte do pressuposto de que a dádiva produz a aliança, seja aliança matrimonial, religiosa ou política. A vida social então, está baseada na tríplice obrigação de dar, receber e retribuir.
Nessa perspectiva dois grupos humanos podem ter duas opções ou se afastar e gerar desconfiança ou unirem-se e estabelecerem relações de dar, receber e restituir.  Ou se confia ou não se confia, ou ama ou não ama, qualquer reticência em dar faz com que se perca a confiança, como traz o livro da Revelação: ai de quem for morno! (cf. Ap 3, 16). Nesse processo da dádiva cria-se aliança porque “ao dar, dou sempre algo de mim mesmo. Ao aceitar, o recebedor aceita algo do doador. Ele deixa, ainda que momentaneamente, ser um outro; a dádiva aproxima-os, torna-os semelhantes”.[5]
            Afinal o que seria o Dom ou a Entrega? Segundo Alain Callé, Dom é “toda prestação de serviços ou de bens efetuada sem garantia de retribuição, com o intuito de criar, manter ou reconstituir o vínculo”.[6] Diante dos extremos do problema metodológico que de um lado se reduz ao individualismo que tenta explicar tudo pelo interesse consciente ou o holismo, que por outro lado procura explicar pela pressão social, a antropologia do Dom quer mostrar que as relações humanas alicerçam-se no Dom, na Entrega que estabelece vínculos que permanecem. 
            O Dom tem a pretensão de estabelecer aliança, todavia não se restringe ao seres humanos, mas transcende. O sacrifício é o Dom feito a seres superiores pela pessoa que o oferta.[7] O sacrifício procura estabelecer comunicação com o divino, por intermédio da vítima. Por isso, o sacrifício deve se tornar algo permanente, de tal modo que a Aliança estabelecida com Deus seja algo perene. Tal como os santos e santas, que doam a vida aos irmãos por amor a Deus, para transformar a morte em vida, fazem sacrifício sem uma visão utilitarista, tentando receber algo em troca, mas a entrega que fazem legitima o sacrifício que oferecem.
            Temos então no sacrifício, Entrega que se torna vida, um valor eterno. Se nos entregamos para gerar vida e estabelecer vínculo, tal vínculo ancora-se no eterno através do sacrifício. Somente num prisma de eternidade pode-se amar verdadeiramente. Porque somente um amor assim, transcende toda diversidade das pessoas e ama o próximo pelo que ele é. A eternidade purifica o amor de qualquer desespero ou predileção, e propicia uma igualdade perfeita. Enfim, “a relação com Deus é a marca pela qual se conhece se o amor aos homens é autêntico. Faz parte de uma relação de amor a triplicidade; o amante, o amado, o amor; mas o amor é Deus. E por isso, amar uma outra pessoa é ajudá-la a amar a Deus, e ser amado consiste em ser ajudado”.[8]
            Portanto, amar como Entrega que gera vida no próximo, estabelece vínculo, que tem peso eterno e é a essência da Aliança com Deus. Isto é o fazer a vontade de Deus para conseguir a vida eterna, conforme a resposta do jurista.      

2 O homem livre ama o próximo necessitado
            Em primeiro lugar, o homem para amar precisa ser livre. O Samaritano não estava preso a preconceitos ou limitações que o impedisse de ir ao encontro da necessidade de um outro ser humano. Nesse ponto o amor cristão exige um coração puro (cf. Mt 5, 8), um coração livre que não tenha nenhuma consideração de pessoas e possa assim se entregar livremente, um coração que se “joga no prazer da entrega de si”.[9] Na medida que o Samaritano é um homem com o coração livre e abdicado, sua motivação ao doar-se é que o outro também seja um ser humano livre, por isso “dar é deixar a pessoa que recebe num estado em que ela não precisa mais da nossa doação”.[10]
            Em segundo lugar, o homem livre ama o seu próximo. O legista queria utilizando-se da lei, escolher o seu próximo, Jesus por sua vez quer trabalhar a idéia de tornar-se próximo. Nesse ponto, amar o próximo é amar toda e qualquer pessoa, amando as pessoas a quem podemos, ou amando o esposo ou a esposa e se amo essas pessoas de verdade, nelas amar todas as outras. Amar até o inimigo (Cf. Lc 6, 27), porque diante de toda alteridade deve-se perceber a essência humana, não há diferença, afinal amar o próximo é aceitar a eterna igualdade. Por que tudo isso? Porque amar é pressupor amor na outra pessoa, bem como que todo ser humano ama a si mesmo. Ninguém pode colocar amor no coração do próximo, mas a partir do fundamento do amor que existe na outra pessoa edificar o amor, pois “o homem amoroso que edifica só tem um único método, pressupor o amor; o que haveria de resto por fazer só poderia ser constantemente obrigar-se a sempre pressupor o amor. É assim que ele favorece a eclosão do bem, ele faz crescer com amor o amor, ele edifica”.[11]   
            Por fim, o homem livre ama o próximo necessitado. O homem livre consciente de sua própria solidão, por princípio sabe-se necessitado do amor divino e da ajuda de outras pessoas, ele tem consciência de sua própria debilidade.  O homem livre sabe-se um necessitado, um pobre. O próprio Jesus identificou em si esta necessidade de ser amado por um ser humano (Cf. Jo 21, 16). Esta consciência da própria pobreza é que faz com que o Samaritano vá ao encontro da necessidade do próximo, sejam tais necessidades corporais, psicológicas, afetivas ou espirituais. O homem que ama procura então, satisfazer a necessidade do outro, não suas vontades, mas as suas verdadeiras necessidades, isto é, aquelas destinadas a propiciar a maturidade humana.
            Concluindo, o homem livre sabe-se pobre, vê o próximo, pressupõe nele o amor e vai ao encontro de sua necessidade, para que este também se torne um homem livre e possa amar.   
3 Amor cristão é Entrega
            Deus é a fonte do amor, esse amor divino é um amor-entrega por excelência, porque em Deus não há necessidade, mas somente abundância que quer entregar-se. A razão da criação é o amor que faz cada criatura existir. Por sermos imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26), a nossa vocação é também se entregar e a realização humana está nesse doar-se. O amor natural, o eros, a amizade, a afeição são assumidos pelo Absoluto e transformados pela graça em caridade, em doar-se ao próximo.[12]
            O que seria esse “se entregar” ? O Samaritano doa uma parte de sua vida, de seu tempo, de suas energias para que o próximo pudesse ter vida. Faz isso, não para aparecer ou para ser reconhecido pelos homens (cf. Mt 5, 43-46), e muito menos para ser um escravo ou ter um escravo, mas o faz simplesmente para que o outro pudesse viver e se tornar uma pessoa livre, isto é, manter-se por si só. Não coloca limites ou determinantes em sua doação.
O ser do homem é estruturalmente um ser com os outros, está estruturalmente aberto ao amor. Quando o homem ama é um ser para o outro. Por isso, o amante vive literalmente para o ser do amado.[13]
Nesse processo de Entrega, o sofrimento aparece, como para surgir a companheira de Adão foi preciso tirar a costela, sempre no processo da doação é preciso retirar algo do homem antes de lhe dar.[14] A caridade, o doar-se, nos torna vulneráveis, por isso é preciso que a caridade seja paciente, prestativa, tudo desculpe, tudo creia, tudo espere e tudo suporte (cf. 1 Cor 13, 7).
A Entrega não está presa somente aquele ato de amor e depois abandona o necessitado. O Samaritano leva o necessitado até a hospedaria e coloca-se a disposição mesmo quando parte (cf. Lc 10, 35). Amar é estar à disposição. Ao contrário de Caim que questiona a Deus: “Acaso sou guarda do meu irmão?” (Gn 4, 9), o amoroso preocupa-se com o necessitado. A Entrega não é feita somente com os atos, mas com o estar a disposição, com o ouvir ativamente o outro, prestar atenção a sua situação, mesmo quando não se pode fazer nada, a exemplo de Cristo, estar presente a cada instante na vida do necessitado, ser presença total. “Ouvir alguém não significa que concordamos com o que foi dito, mas que estamos interessados em compreender suas motivações”.[15]
O amor como Entrega consiste em primeiro lugar em ver, em estar atento à realidade do outro. Depois se mover de compaixão, todo o nosso ser estar voltado para auxiliar o outro em sua real necessidade, doar a nossa vida, tempo e qualidades para satisfazer as verdadeiras necessidades do próximo, para que o necessitado tenha vida e possa tornar-se assim um ser humano livre. É preciso estar sempre à disposição, estar presente a cada instante na vida do necessitado. Mas nesse processo estar conscientes do sofrimento que isso gera e assumir tal sofrimento na Cruz do Senhor Jesus Cristo. A Entrega gera vínculos que perduram pela eternidade, uma aliança eterna em Cristo que satisfaz o coração humano. Esse amor-entrega, que procura fazer o bem (cf. At 10, 38), é graça de Deus e é o fundamento da motivação humana, isto é, do mover do coração humano (cf. Lc 10, 33).



[1] Cf. Gaudium et Spes, 45.
[2] Cf. nota 10, 29. In: BÍBLIA: Bíblia do peregrino, novo testamento. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2000, p. 231. 
[3] Do grego splagcnizomai, comover-se. A palavra motivação advém do latim movere, que significa mover.
[4] Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 185.
[5] LANNA, M.Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. Revista de sociologia e política, Curitiba, 14, [jun.] 2000. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php> Acesso em 21 de outubro de 2006, 14:05:45. 
[6] Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 142.
[7] Cf. CAILLÉ, A. Antropologia do dom: O terceiro paradigma, p. 168.
[8] KIERKEGAARD, S. As obras do amor: Algumas considerações cristãs em forma de discursos. Petrópolis: Bragança Paulista; Vozes: Editora Universitária São Francisco, 2005, p. 146.
[9] KIERKEGAARD, S. As obras do amor: Algumas considerações cristãs em forma de discursos, p. 177.
[10] LEWIS, C. S. Os quatro amores. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 71.  
[11] KIERKEGAARD, S.Op. cit. p. 248.

[12] Cf. LEWIS, C. S. Os quatro amores, p. 176-179.  
[13] Cf. WILHELMSEN, F. D. La metafísica del amor. Madrid: Rialp, 1964, p. 22-23.
[14] Cf. KIERKEGAARD, S. As obras do amor: Algumas considerações cristãs em forma de discursos, p. 182.
[15] HUNTER, J. C. Como se tornar um líder servidor: Os princípios de liderança de O monge e o Executivo. Rio de Janeiro: Sextante, 2006, p. 66. 

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