INSTITUTO SUPERIOR DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS RELIGIOSAS
SÃO BOAVENTURA
O
LOUVOR COMO EPIFANIA DA GRAÇA SANTIFICANTE
ALEX
SANDRO MELETINO PINTO
SÃO
PAULO - 2020
ALEX
SANDRO MELETINO PINTO
O
LOUVOR COMO EPIFANIA DA GRAÇA SANTIFICANTE
Monografia
apresentada ao Instituto Superior de Filosofia e Ciências Religiosas São
Boaventura, pelo aluno Alex Sandro Meletino Pinto, como parte do requisito para
obtenção do título de Graduação em Teologia, sob a orientação do Prof. Pe. Dr.
Micael de Moraes, sjs.
SÃO
PAULO – 2020
ALEX
SANDRO MELETINO PINTO
O
LOUVOR COMO EPIFANIA DA GRAÇA SANTIFICANTE
Monografia
apresentada ao Instituto Superior de Filosofia e Ciências Religiosas São
Boaventura, pelo discente Alex Sandro Meletino Pinto, como parte do requisito
para obtenção do título de Graduação em Teologia.
Aprovado em de outubro de 2020.
Prof.º
Dr. Pe. Micael de Moraes, sjs
SIGLÁRIO
Ap – Apocalipse de João
AT – Antigo Testamento
At – Atos do Apóstolos
CIC – Catecismo da Igreja
Católica
Cl
– Carta aos Colossenses
1Cor
– Primeira Carta aos Coríntios
2Cor
– Segunda Carta aos Coríntios
DCE – Deus Caritas Est
Dn – Livro do Profeta
Daniel
Dt – Livro de Deuteronômio
DV – Dei Verbum
Ef – Carta aos Efésios
EG – Evangelium Gaudium
Ex – Livro de Êxodo
Ez – Livro do Profeta Ezequiel
Fl – Carta aos Filipenses
Gl – Carta aos Gálatas
Gn – Livro de Gênesis
GS – Gaudium et Spes
Hb – Carta aos Hebreus
Is – Livro do Profeta Isaias
Jo – Evangelho segundo João
1Jo – Primeira Carta de
João
Jr – Livro do Profeta
Jeremias
Lc – Evangelho segundo
Lucas
Lv – Livro de Levítico
LXX - Septuaginta
Mc – Evangelho segundo
Marcos
Mt – Evangelho segundo Mateus
Nm – Livro de Números
NT – Novo Testamento
Os – Livro do Profeta Oseias
Pr – Livro dos Provérbios
Rm – Carta aos Romanos
SC – Sacrosanctum
Concilium
Sl – Livro dos Salmo
1Sm – Primeiro Livro de
Samuel
1Tm – Primeira Carta a
Timóteo
1Tm – Segunda Carta a
Timóteo
EPÍGRAFE
“A glória de Deus é o homem que vive e a vida do homem consiste na visão
de Deus” (SANTO IRINEU DE LIÃO)
AGRADECIMENTO
Louvo e agradeço a Deus por conceder-me a graça de
concluir, não somente esta monografia, mas toda formação acadêmica necessária
para o acesso as Ordens Sacras. Nesse sentido, agradeço a todos os professores
que favoreceram o meu crescimento espiritual e humano. Em especial, agradeço ao
Prof. Pe. Dr. Micael de Moraes, sjs, tanto por ter me acompanhado todos os anos
de formação acadêmica, como pela sua dedicação no processo de orientação desta
monografia.
Por fim, agradeço a todos
os meus irmãos de comunidade, sinais da graça de Deus em minha vida.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1
TEOLOGIA DA GRAÇA
O Amor de Deus na
História da Salvação
A Graça no Antigo
Testamento
A Graça no Novo
Testamento
1.
A Graça como
Reconciliação com Deus: A Justificação
2.
Natureza e Graça
CAPÍTULO 2
O LOUVOR NA HISTÓRIA DA SALVAÇÃO
1.
A Compressão de Louvor
no Antigo Testamento
2.
O Caráter Cristológico
do Louvor no Novo Testamento
3.
O Louvor na
Liturgia Cristã
CAPÍTULO 3
O LOUVOR COMO EPIFANIA DA
GRAÇA
1.
O que é Epifania
2.
A Epifania da Graça na Liturgia
3.
Liturgia como Fonte da Vida Cristã:
Louvor é Epifania da Graça
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
INTRODUÇÃO
A Constituição Dogmática Dei Verbum
afirma que a alma da Teologia é a Sagrada Escritura, deste modo, ao refletir
sobre a teologia da graça o caminho a ser percorrido deve ser, também o da
Sagrada Escritura. Ao comtemplar a História da Salvação se percebe que a
experiência de Deus que o Israel faz é uma experiência de um Deus que é amor,
um Deus gracioso que se manifesta na história revelando a sua identidade. A
graça no AT deve ser compreendida exatamente como manifestação do amor de Deus,
em um processo pedagógico pra o que viria ser a plenitude dos tempos: A
Encarnação do Verbo.
O evento da Encarnação do Filho de
Deus epifaniza-se, no mais alto grau, o ser de Deus. Conhecemos a Deus
conhecendo o Cristo. Diante de tal manifestação do amor de Deus o homem movido,
assim como acontecia no AT, a prorromper-se em louvor e agradecimento pela
manifestação do amor de Deus ao homem na história. É Deus visitando o seu povo.
Deste modo, o louvor do homem a Deus
é o reconhecimento daquilo que Deus É, mas tal reconhecimento só se torna
possível porque Deus se revela autodoando-se ao homem. O fato do Logos entrar no tempo e na história
possibilita vermos o tempo e o espaço como o lócus da epifania. Será mediante a liturgia que a Igreja,
sacramento de Cristo, pela ação do Espírito Santo, atualizará essas
intervenções divinas na história comunicando a graça que nos advém por meio
delas. O louvor que é vivido pelo homem na liturgia, fonte da vida da Igreja, o
impelirá a uma vida latreutica, em que todo o seu ser se volta para Deus. Dito
de outra maneira, o homem em todas as suas relações, pelo fato de estar unido a
Deus pela graça, é capaz de fazer de toda a sua vida um culto de louvor.
Capítulo 1
Teologia da Graça
1. O Amor de
Deus na História da Salvação
No AT a intervenção de Deus na história é uma ação
livre, um transbordamento do seu amor. Este intervir divino é compreendido como
um encontro entre Deus e o homem. A autocomunicação divina, sua ação reveladora
e salvadora, na história dos homens tem início logo no surgimento da humanidade
e segue-se uma longa sequência de intervenções encaminhando-se para o ponto
culminante, o Cristo. A carta aos
Hebreus afirma: “Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos
nossos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos
por meio do Filho” (Hb 1,1-2). O Cristo é o revelador do Pai, palavra única e
definitiva de Deus, prolongado na Igreja e nas suas mediações sacramentais.
Toda a Revelação tem por objetivo manifestar o amor de Deus ao homem, e isto se
torna mais evidente com a encarnação do Filho, pois, Cristo ao revelar o
mistério do Pai e de seu amor, desvela também plenamente o homem ao próprio
homem e lhe faz conhecer sua altíssima vocação (Cf. GS, n.º 22). O homem é
destinatário do amor do Pai (Cf. LADARIA, 1998, p. 12).
Após a Criação Deus se revela primeiramente aos
nossos primeiros pais que, após o pecado original, faz a promessa de salvação
(Cf. Gn 3,15). Na vocação de Abraão Deus
o coloca como instrumento de benção para todos os povos da terra (Cf. Gn 12,3),
manifestando, assim, o seu desejo salvífico universal. A benção é muito mais
que uma proteção extrínseca, ela mantém, em quem a recebe, a graça derramada, a
vida, a alegria, a plenitude da força, estabelecendo um encontro pessoal entre
a criatura e o Criador, repousando sobre o homem o olhar e o sorriso de Deus
que são a irradiação de sua face e de sua graça -hen - (Cf. Nm 6,25). Essa relação é vital, manifesta o poder
criador de Deus (Cf. DUFOUR, 2013, p. 398). Criar e abençoar, esta relação de
Deus na história da salvação, explicita que Deus não abandona o homem, mas
evidencia que Ele quer estar próximo, mesmo após o pecado de nossos primeiros
pais.
No diálogo com
Moisés, em que Deus o chama para a sua missão de conduzir os israelitas na
libertação do Egito, Deus também revela a sua compaixão pelo o homem: “Eu vi,
eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa dos
seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de
libertá-lo da mão dos egípcios.” (Ex 3,7-8). Deus ouviu o clamor de Israel e
desceu para liberá-lo, neste grito de Israel, o Senhor se revela como Deus
libertador. A libertação é epifania do teu amor. “Inclina a mim teu ouvido,
ouve a minha palavra, demonstra o teu amor, tu que salvas dos agressores quem
se refugia à tua direita” (Sl 17,7). Esta proximidade, no evento do êxodo do
Egito, traz a compreensão aos hebreus de povo eleito, e por isso,
Se torna uma decisiva experiência de
Deus para Israel; Deus escolhe Israel, liberta, salva e se revela nesse evento
como Javé, Libertador, Salvador, Deus forte e confiável. A festa anual do pesach sempre coloca essa experiência na
atualidade. Ele é de certo modo, o sinal do sinal: a reiterada narrativa e a
repetição no drama ritual lembram o começo da história com Javé, e justamente
assim essa história se torna novamente realidade para Israel (NOCKE, 2008, p.
175).
A Aliança
entre Deus e Israel é manifestada pelo dom da Torah, “as palavras da
Aliança são a revelação da vontade divina, que respeitada ou transgredida trará
a benção ou a maldição” (LATOURELLE, 1985, p. 17). Após a manifestação do amor
de predileção por Israel, Deus suscitou juízes, profetas, para que eles fossem
sinais; símbolos, e por meio deles
Deus forma o seu povo na esperança da
salvação, na expectativa de uma aliança nova e eterna, destinada a todos os
homens, e que será impressa nos corações. Os profetas anunciam uma redenção radical
do Povo de Deus, a purificação de todas as infidelidades, uma salvação que
incluirá todas as nações. Serão sobretudo, os pobres e humildes do Senhor os
portadores desta esperança. (CIC nº. 64).
O homem na sua
liberdade corresponde ao amor de Deus, na medida que permanece fiel a aliança.
A benção, como foi dito acima, contêm a força vital para que o homem consiga
amar a Deus sendo justo, uma ação correspondente como resultado do dom da
graça. Esta justiça é vivida nas relações que se estabelece com o próprio Deus
e com os irmãos e irmãs do povo de Deus da aliança. Quando Israel não vive esta
justiça, mas torna-se infiel ao pacto que fizera com o Senhor, Deus permanece
fiel renovando a aliança e lutando pelo coração de seu povo (Cf. MÜLLER, 2019,
p. 545), “Eu te desposarei a mim para sempre, eu te desposarei a mim na justiça
e no direito no amor e na ternura. Eu te desposarei a mim na fidelidade e
conhecerás a Yahweh” (Os 2,21-22). A Bíblia de Jerusalém, na nota de
rodapé do texto referido acima, traz um comentário a este verbo desposar:
Este verbo, desposar, é usado na Bíblia somente referindo-se a uma jovem
virgem. Deus suprime todo passado adúltero de Israel, que é como criatura nova.
Na expressão “eu te desposarei a mim na (justiça)”, o que segue a preposição
“na” designa o dote que o noivo oferece a sua noiva. O que Deus dá a Israel
nessas novas núpcias, não são mais os bens materiais da aliança antiga, mas as
disposições interiores requeridas para que o povo seja agora fiel à aliança.
Temos aqui, já em germe, tudo aquilo que será desenvolvido por Jeremias e
Ezequiel: a nova e eterna aliança, a lei gravada no coração, o coração novo, o
espírito novo.
As Escrituras
não são somente literatura. Para todos os que estão sob a ótica da fé
judaico-cristã, ela contêm a Palavra de Deus. O seu sentido literal é uma porta
aberta pela qual se atinge o seu sentido espiritual, ou seja, aquele sentido
que se refere a Deus. Ao obtê-lo, este necessita de uma aplicação concreta na
vida (Cf. MORAES, 2012, p.43). Portanto, não se faz teologia sem a Sagrada
Escritura, como afirma a DV n.º24,
A
sagrada Teologia apoia, como em seu fundamento perene, na palavra de Deus
escrita e na sagrada Tradição, e nela se consolida firmemente e sem cessar se
rejuvenesce, investigando, à luz da fé, toda a verdade contida no mistério de
Cristo. As Sagradas Escrituras contêm a palavra de Deus, e, pelo fato de serem
inspiradas, são verdadeiramente a palavra de Deus; e por isso, o estudo destes
sagrados livros deve ser como que a alma da sagrada teologia.
Na tradução
dos LXX a palavra charis (em latim, gratia) foi utilizada para traduzir
alguns conceitos usados no AT que falam da ação benevolente de Deus, da sua
misericórdia, do seu amor de eleição por Israel. No NT, sobretudo em São Paulo,
a graça é especialmente o evento salvífico, a salvação obrada por Cristo que
nos chega pelo anúncio do Evangelho e pela efusão do Espírito Santo com todos
os seus dons. (Cf. LORDA, 2004, p. 26). A seguir apresentaremos o conceito de
graça no desenvolvimento bíblico no AT e NT.
2.
A Graça no
Antigo Testamento
Para uma
compreensão, veterotestamentária, da graça nos é, primeiramente, necessário
despir do preconceito que há a respeito dos textos do AT. É inverossímil que a
imagem de Deus, presente no AT, seja de um déspota que exerce seu poder para
vingar-se e, que cheio de ira, deseja a morte de seu povo e, que apenas no NT,
com a encarnação do Verbo, que se apresenta um Deus benévolo e rico em
misericórdia. Ainda que seja multifacetada a imagem de Deus no AT, rica em
tensões e contradições, provenientes dos vários contextos que foram escritos
cada livro do cânon bíblico, pode-se afirmar que no cerne da experiência de
Israel encontra-se o Deus da vida e da salvação (Cf. Ez 33,1). Basta-nos
consultar, por exemplo, o livro de Oséias, ou o texto de Ez 16, tão
ilustrativos para a teologia da graça, que o preconceito mencionado acima não
se sustenta (Cf. HILBERATH, 2008, p. 15).
Na maturidade
de Israel, principalmente após o exílio na Babilônia, sua compreensão acerca de
Deus, oposta as nações vizinhas, é monoteísta: “Ouve Israel, o Senhor, nosso
Deus, é o único Senhor” (Dt 6,4). Um único Deus, criador de todas as coisas,
cujo ápice da criação é o ser humano. “Deus disse: Façamos o homem à nossa
imagem, como nossa semelhança” (Gn 1,26).
O homem é criado por Deus na totalidade criada (primeiro dia), na
dualidade matéria e espirito, imagem e semelhança de Deus, macho e fêmea
(segundo dia), de modo a exercer um governo pastoril (Cf. Gn 1,26) sobre toda a
Criação que vive no mar, no céu e na terra (terceiro dia). Deus os abençoa com
a fecundidade para multiplicar e encher a terra (quinto dia) e assim governá-la
pastoralmente como homem e mulher, sobre os animais da terra, céu e mar, e toda
a criação (homens e animais) sustentada pelas ervas e frutas com suas sementes
(terceiro dia). O sexto dia é o cume do trabalho da criação, com o advento do
administrador dela, que é o ser humano, homem e mulher. Nele está presente a
criação e a imagem e semelhança do Criador. O ser humano deve governar a
totalidade criada sob a regulação dada pelo próprio Criador (quarto dia)
(MORAES, 2012, p. 55).
“A revelação
veterotestamentária não conhece um Deus ocioso, mas sim um Deus Criador e
ocupado com Sua criação, em especial, ocupado dos seres humanos, por isso, Ele
é apresentado como favorável e gracioso (Ex 34, 6; Sl 86,15; 103,8)” (MELO,
2015, p. 20). É esse Deus que escolhe gratuitamente Israel como povo eleito.
Está eleição, compreendida como ação amorosa de YHWH, que na história de Israel
se confirma mediante as inúmeras intervenções divinas, em que Deus conduz,
orienta, sustenta e os convida constantemente a renovar a aliança sinaítica.
A iniciativa de Deus que socorre e agracia é, para o judaísmo, o apoio
para crerem numa eleição especial que os fazia povo de Deus. O dom imerecido
desta eleição seria lido mais tarde em clave cristã, mas sempre remetendo aos
grandes eleitos do povo da primeira Aliança: Noé (Gn 6,8) que fora eleito e
salvo do meio da massa dos condenados do dilúvio; Abraão, homem de fé, chamado
por sua fé, sem se levar em conta os merecimentos de suas obras (Gn 12); Moisés
(Ex 3,12-13), cuja vida, unida ao seu povo, seria salvo dos inúmeros socorros
de Deus, que liberta e lhes dá a posse da terra prometida (Nm 11,1) (MELO, 2015,
p. 20).
Os termos
utilizados na Torah para descrever a ação amorosa de Deus com Israel são muitos
e os “que mais se aproximam do significado literal de graça, clemência,
misericórdia é a forma verbal hebraica hanan e seu derivado substantivo hen”. (HILBERATH, 2008, p. 15).
Para expressar a benevolência divina a Bíblia fala da ternura e
misericórdia (rahamim) de Deus, de sua piedade (hesed) e de sua
predileção por Israel, a quem favorece (hen). Tudo isso se compreende em
um importante texto, quando Moisés, depois de contemplar a glória de Deus
exclama: “Yahweh, Deus compassivo (rahum), lento para a irá, rico em
piedade (hesed) e fidelidade (emet)
que mantêm tua piedade (hesed) por
mil gerações”. (Ex 34,6) (LORDA, 2004, p. 28).
Todos estes
termos indicam o interesse gratuito de Deus por Israel, entretanto, cada um
salienta um aspecto.
O termo
hebraico hen, que é traduzido pela
Septuaginta como charis, é o
substantivo do verbo hanan. Este
termo designa o favor gratuito concedido a um necessitado. É o inclinar-se de
um superior a um subalterno, no sentido de magnânima dedicação. Esse
inclinar-se, amiúde, é precedido da correspondente solicitação por parte de
quem busca auxílio. Por isso, “o ter graça para com”, ou, “encontrou
misericórdia”, denotam o conceder um auxílio concreto a alguém. Em Gn 6,8 o
texto afirma que Noé encontrou graça aos olhos do Senhor (hen). Graça, neste conceito, é compreendido tanto na ação de quem
concede um favor, quanto na pessoa destinatária do dom recebido. Percebemos que
na continuidade do texto referido acima (Cf. 6,13-22), Deus se volta para Noé,
e ao pedir para que este construa a arca, lhe concede a graça para tal
empreendimento, a vontade de Deus se concretiza através das obras de Noé.
O termo hesed é o que mais se equivale ao termo
central graça. Este termo hebraico possui muita amplitude de significados
(afeição, amabilidade, benevolência, solidariedade, bondade, graça). A tradução
dos LXX a traduziu por Eleós (misericórdia,
amor). É o contexto em que o termo está inserido que define o seu sentido mais
preciso. Hesed, indica ainda, a
atitude própria de quem está ligado por alguma aliança (Cf. Dt 7, 9.12). Hesed é o amor de Deus como um zelo
ardente, sua lealdade, uma benevolência condescendente com as criaturas,
manifestando, muitas vezes, a sua lentidão para a ira (Cf. Nm 9,17), o amor que
fortalece não somente a vontade, mas também concede a força física para vencer
os inimigos e, por isso, fonte de louvor (Cf. Sl 59,11). A própria proclamação
de amor a Deus, com toda a sua amplitude, cantada nos salmos, é fruto da
experiência do amor divino, uma resposta as manifestações de Deus (Cf.
118,4.29; 57,11; 89,2; 136,1; 145,8), e esta proclamação de amor se compreende
na perspectiva da fidelidade à aliança, comungar dos mesmos sentimentos
divinos, pois o louvor se torna mais genuíno quando o homem vivência a
fidelidade, são os corações retos, os humildes
que podem compreender a grandeza de Deus, mas se se percebe que a transgrediu, ainda
assim pode louvar o amor de Deus que é eterno, imutável, um louvor a sua
misericórdia (Sl 106; 107; 111; 113; 117;135).
O termo rahamim, comparado aos termos
anteriores, acentua o aspecto do sentimento e da emoção que não estão expressos
pelos termos anteriores, citados acima. Rahamim
é o plural do substantivo rehem, que
significa útero, indicando o sentimento materno em relação ao fruto das
entranhas, as vísceras de misericórdia. “Yahweh! Yahweh... Deus de ternura e de
piedade, lento para a cólera, rico em graça e em fidelidade” (Ex 34, 6). Este
trecho é uma profissão de fé em Deus, todavia, não se sabe se é Moisés que
proclama esta profissão ou se o próprio Deus que revela o seu nome
(identidade), entretanto, é possível ver aqui o cumprimento da promessa feita
em Ex 33, 19-23 (Cf. BÍBLIA DE JRUSALÉM, p. 152).
Por fim, o
termo emet (fidelidade) aparece
frequentemente aliado ao termo hesed.
Esta ligação dá o tom da fidelidade, solidez, das obras e das palavras de Deus.
“Hesed vê emet” significa a graça fidedigna
e constante (Cf. DUFOUR, 2013, p. 396).
Em suma, estes
termos, e os seus conceitos, ilustram a relação que Deus estabelece com o seu
povo. A essência desta relação é o agir benévolo totalmente gratuito de Deus. É
iniciativa de Deus de inclinar-se ao ser humano aproximando-se dele. Ainda que
não haja um conceito de graça sistematizado, e é natural que nos textos
sagrados assim o seja, podemos identificar que a ação de Deus visa salvar o
homem por inteiro. A tradição veterotestamentária nos dá uma nítida imagem que
Deus sempre tem a iniciativa de salvar o povo que escolhera, permanecendo fiel
a aliança que estabeleceu com Israel. Todavia, o AT nos deixa portas abertas
para o que viria a ser chamado plenitude dos tempos. No livro do profeta
Jeremias aparece a categoria “Nova Aliança” (Cf. Jr 31,31-34), em Isaías 53
temos a narrativa do servo sofredor, e em Joel, o derramamento do Espírito
Santo de modo universal. Essas são algumas profecias, dentre muitas outras, que
terão seu pleno cumprimento com a encarnação do Verbo.
3.
A Graça no
Novo Testamento
Considerando a
Sagrada Escritura no seu todo, constata-se uma evolução do pensamento teológico
e do testemunho da revelação. Para o cristão, o AT está incompleto e clama por
uma plenitude. Sabemos que este completar-se
se realizou pela obra salvífica de Cristo. Somente o NT pode levar na plenitude
a revelação veterotestamentária (Cf. Mt 5,17) (Cf. KRINETZK, 1978, p. 477).
Para o NT a
graça, é especialmente o evento salvífico, uma bondade e uma simpatia única de
Deus que se fez bondade em Jesus Cristo. “A novidade está em que a graça de
Deus agora recebe um nome definitivo (Jesus de Nazaré) e que ela aparece em seu
caráter pneumatológico universal e indisponível” (HILBERATH, 2008, p. 17).
Nos gestos e palavras do Nazareno encontra-se a gratuidade de Deus
mesmo, o Reino da graça que acaba de chegar. Deste modo, no Novo Testamento,
encontramos uma narrativa do evento “Graça”, e não propriamente uma teologia
elaborada sobre o tema. Jesus, o Salvador, vem ao nosso mundo, e interage com
os excluídos da religião oficial, come a mesa com os pescadores e publicanos e,
nos Seus feitos a bondade eletiva de Deus vai se manifestando. Por seus
milagres, curas e exorcismos o Reino de Deus demonstra-se como poder que salva
e socorre por misericórdia, fracos e oprimidos. Esta salvação, operada fora dos
padrões tradicionais que ligava culto e pureza, a Lei e o Templo, era um
chamado a uma vida nova. Por meio de Jesus, os evangelhos anunciam que Deus
derramava sua benção, renova sua aliança e dá seu perdão gratuitamente. O novo
e absoluto movimento da beneficência divina tem como núcleo a Pessoa de Jesus,
expresso pela categoria Reino, é antes de tudo um Evangelho da graça (MELO,
2015, p.23).
Como foi dito
acima, charis é o termo utilizado
pela tradução grega da Septuaginta para traduzir alguns termos que se refere a
ação benevolente de Deus. No NT, mais precisamente nos sinóticos, o termo charis não ocorre em Mateus, nem em
Marcos. É no Evangelho segundo Lucas que a Palavra graça é usada de uma forma
semelhante ao sentido utilizada no AT. O autor do Evangelho de Lucas, ao fazer
referência a alguns personagens (João Batista, Maria, o próprio Jesus) assinala
que são agraciados aos olhos de Deus recebendo os seus dons, especialmente, o
Espírito Santo.
Na cena da anunciação (Lc 1, 26-33) o anjo saúda
Maria com as palavras chaire, kecharitomene, ho Kyrios meta sou (alegra-te,
plena de graça, o Senhor está junto a ti – contigo -). A considera escolhida
porque goza de uma particular proximidade do Senhor e dos seus dons. Empregando
a antiga expressão bíblica, acrescenta: encontrou graça (charis) diante de
Deus (1,30). E comunica que vai ser a mãe do Filho de Deus, pelo Espírito
Santo (1,35). Ainda que as expressões nos recordam o Antigo Testamento, há algo
novo: Maria é agraciada a plena de graça porque Deus está com ela; e tem
sido bendita entre as mulheres (Lc 1,42.48) com o Espírito Santo. João
Batista, antes de nascer, foi ungido com o Espírito Santo (Lc 1,15.41.66.80).
De Jesus menino se diz que crescia e se fortalecia, e a graça do Senhor
estava com ele (Lc 2, 40), é dizer, que gozava da benevolência e dos dons
de Deus. E que crescia em sabedoria, em idade e em graça diante de Deus e
dos homens (Lc 2,52), é dizer, que era agraciado aos olhos de Deus e dos
homens pelos dons que possuía. A palavra graça está tomada do uso comum, com o
seu significado geral, porém se refere ao Espírito Santo e aos seus dons
(LORDA, 2004, p. 29).
No evangelho
segundo João não aparece a palavra charis,
há a preferência pelo termo vida. Jesus Cristo é o Salvador do mundo (Cf. Jo
4,42), o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29). Jesus é o Bom
Pastor que dá a vida por suas ovelhas
conduzindo-as ao bom redil (Cf. Jo 10,11), a água viva que sacia a sede
da humanidade (Cf. 7,38). No capítulo seis, João nos fala de Jesus como o Pão
da Vida, o pão que é a sua palavra e que é o pão eucarístico, o Cristo que
oferece sua carne e o seu sangue como verdadeira comida e verdadeira bebida, e
aqueles que a comem terão a vida eterna (Cf. Jo 6,54). Ele é o verdadeiro Pão
do Céu que dá vida ao mundo (Cf. Jo 6,32-33).
Nota-se, muito
claramente, que a categoria teológica, em João, para designar vida é o termo grego zoé, que dá o
sentido de plenitude, de eternidade, e que difere do termo bios (vida
terrena). Podemos afirmar que o termo utilizado por João para falar da vida que
Cristo nos oferece significa a comunhão que é estabelecida entre Deus, em Jesus
pelo Espírito Santo, e aqueles que aceitam Jesus Cristo como salvador,
comungando da sua Palavra e do seu Corpo, estabelecendo um elo entre a graça de
Cristo e a vida sacramental. A vida é entendida como a gratia Christi. Jesus
foi enviado ao mundo para levá-lo a plenitude. (Cf. MELO, 2015, p. 25).
João nos fala da intimidade de Jesus com o Pai. Desde o “Prólogo”, ele
nos fala da plenitude que Cristo possui e que nos vai transmitir. O Filho
recebeu tudo do Pai, e nos dá a participar. Todos os dons que temos procedem do
Filho [...]. Quem recebe a sua Palavra recebe os seus dons: sua luz, sua graça
e uma vida nova [...]. A vida que vem de Jesus Cristo pelo Espírito se
caracteriza pela caridade. É a novidade do viver cristão. O mandamento novo tem
de ser o sinal que identifica os cristãos (LORDA, 2004, p. 58-59).
A categoria
vida para João é a comunhão (relação) que é estabelecida com Deus. Temos em São
Paulo um termo análogo, koinonia, que é a comunhão trinitária, onde o
homem participa desta comunhão a partir do batismo. A vida plena é a comunhão
com Deus, é a relação com a Trindade, que se tornou possível pela graça de
Cristo.
Olhando para a
teologia paulina, percebemos que São Paulo utiliza o termo charis em alguns sentidos: agrado (Cf. Cl 4,6); benefício (Cf. 2Cor
1,15); ação de graças (Cf. 2Cor 1,11), sendo que o termo predominante para ação
de graças é eucaristia. Mas é o novo sentido teológico, que se desenvolve desde
o AT, que emerge com pujança na teologia paulina: graça como a totalidade da
obra do Filho e do Espírito como manifestação do amor benevolente e gratuito do
Pai (Cf. Rm 3,24; 1Cor 2,12; Gl 1,6; Ef 1,6; Fl 1,7; etc.).
Assim charis é especificada
por Paulo como a graça de Deus a justificar todos os pecadores. “Todos pecaram
e todos estão privados da glória de Deus – e são justificados gratuitamente,
por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus” (Rm 3,23s)
[...]. A graça de Deus, fonte de tudo, é caracterizada formalmente pelo
gratuitamente [...]. A lei dada por Deus somente ainda conseguia pôr a
descoberto a culpa das pessoas, salvação somente há Jesus Cristo, numa vida a
partir do Espírito santificador e sanador[...]. Todos os que no Espírito Santo
experimentam a graciosa dedicação de Deus e professam que, sem qualquer direito
próprio, por pura graça, foram justificados perante Deus em Jesus Cristo,
resgatados da escravidão e acolhidos como filhas e filhos do Pai, o Espírito
reúne na comunhão da graça que é a comunidade-igreja, para cuja edificação ele
concede seus dons da graça (HILBERATH, 2008, p. 19).
Entre muitos
temas importantes para a teologia da graça, o que será abordado a seguir é o
tema da justificação. Todo o NT fala da necessidade da fé para a justificação.
Mas a doutrina é desenvolvida particularmente por Paulo, nas Epístolas aos
Gálatas e aos Romanos (cf. Gl 2, 16; 3.5.8.11.24; 5, 5; Rm 1,17; 3, 28.30;
4,3.5.9.11; 5,1).
Portanto, não
se deve falar, tão pouco compreender, a graça abstratamente, mas sim do homem
que é destinatário dessa graça. Trata-se do homem redimido e justificado, é a
autocomunicação de Deus Trino ao homem; essa autocomunicação constitui a
essência última da graça, é o ato fundamental de Deus em Cristo para com o
não-divino (Cf. LADARIA, 1998, p. 26).
4.
A Graça como
Reconciliação com Deus: A Justificação
Antes de
entrar no tema proposto, a graça como justificação, é-nos imprescindível
retomar o conceito de graça, a sua natureza.
É um donativo gratuito e sobrenatural, que supera e transcende toda a
ordem da criação, ação ad extra de Deus; é uma participação da sua vida
íntima. É, pois, uma “semente de Deus”, no dizer de S. João. Cai no âmago de
nossa natureza e produz sua divinização. Não nos tornamos Deus, mas nos
tornamos divinos. Da Natureza, se derrama para todas as Faculdades a
sobrenaturalização, evangelização de todos os hábitos, transfiguração de todos
os pendores e instintos, e o arcabouço humano de todas as nossas tendências
fica sendo um Corpo Místico de Cristo que produz um proceder cristão, um
Cristo-Vida (RODRIGUES, 1983, p. 14).
Pela graça do
Espírito Santo se estabelece novamente uma amizade do homem com Deus, uma
relação pessoal e íntima com o Senhor. Ao receber o Espírito Santo, no batismo,
fonte de toda a graça (Cf. Cl 2,12-12), o homem se torna filho de Deus, há o
perdão dos pecados, ou seja, passa da condição de pecador para a condição de
amigo de Deus (Cf. LORDA, 2004, p. 145). O CIC no n.º 734 afirma, “Sendo que
estamos mortos, ou ao menos, feridos pelo pecado, o primeiro efeito dom do Amor
(o Espírito Santo) é a remissão dos nossos pecados”.
O apóstolo
Paulo foi o que mais insistiu no tema da justificação, apontando para a
necessidade da fé em Jesus Cristo para ser salvo (justificado), tanto os
judeus, quanto os gentios (Cf. Rm 1,16-17). “Todos pecaram e todos estão
privados da glória de Deus” (Rm 3,23). Nas cartas aos Gálatas e aos Romanos, o
apóstolo dos gentios, tem como fundo histórico a querela dos judaizantes, os
cristãos recém convertidos do judaísmo que afirmavam a necessidade da
observância da lei judaica para a justificação, insistindo em uma leitura
legalista da Torah que poderia
ofuscar o ensinamento cristocêntrico de Paulo (Cf. MELO, 2015 p. 42).
O Apóstolo das
gentes desenvolve o tema da justificação a partir da figura de Abraão que
partindo da sua fé que foi imputada em conta de justiça, e não a sua
circuncisão, que é um sinal da justiça que tinha obtido pela fé (Cf. Rm 4,3).
No capítulo quinto desta carta o apóstolo, afirma
Justificados pois pela fé temos a paz com Deus, por meio de nosso Senhor
Jesus Cristo. Por ele é que tivemos acesso a essa graça na qual estamos firmes,
e nos gloriamos na esperança de possuir um dia a glória de Deus. Não só isso,
mas nos gloriamos até nas tribulações. Pois sabemos que a tribulação produz a
paciência, a paciência prova a fidelidade e a fidelidade, comprovada, produz a
esperança. E a esperança não engana. Porque o amor de Deus foi derramado em
nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5,1-5).
Este texto
paulino retira a tensão psicológica, bem como a pretensão orgulhosa, de crer
que são as ações humanas que garantem a justificação. Ela, a justificação, é um
dom, no sentido do que já fora apresentado anteriormente, uma ação benevolente
de Deus, é a graça concedida pela morte e ressurreição de Cristo. Neste pequeno
recorte do capítulo quinto, há uma importante referência da unidade das virtudes
teologais (fé, esperança, caridade), como dom do Espírito Santo. Embora,
clarificado, que a justificação advém pela fé, neste mesmo pequeno trecho, São
Paulo ao referir-se as demais virtudes teologais, aponta para uma fé operosa,
marcada nitidamente pela paciência nas tribulações que prova a fidelidade.
Para tornar
mais claro o tema da justificação, faz-se necessário ir à raiz grega do verbo
justificar.
O sentido do verbo “dikaioun” em Romanos 3,24 significa declarar
justo, já que tem uma conotação forense; [...]. Assim a justificação é uma
declaração de justiça num juízo legal (H. Kung), uma não imputação; ela não
pode prescindir do homem concreto que é um pecador, e nem mesmo Deus pode fazer
com que algo que foi cometido (pecado) não tenha sido cometido. Está declaração
de justiça não exclui, e sim inclui uma renovação interior, pois sendo palavra
de Deus, faz o que diz. Portanto, é a justificação uma declaração de justiça,
um evento judiciário, mas um juízo sui-generis: um juízo realizado pelo amor de
quem nos salva, amor que, declarando justo o pecador, o torna de fato justo; um
veredito de salvação, maravilhosamente gratuito, pronunciado pelo Deus fiel à
sua aliança (MIRANDA, 1991, p. 88).
Paulo está em
continuidade coma linha do pensamento teológico do AT. A justificação do
pecador é obra da justiça de Deus que não quer, que nenhum dos seus filhos se
percam. É a postura de Deus que se mantém fiel a sua promessa, a aliança que
estabelecera com Israel. Sendo assim, a justiça de Deus é uma justiça salvífica.
A justificação é realizada mediante a obra redentora de Cristo, portanto, nossa
única fonte de salvação está em acolher a obra de Cristo. É justificado aquele
que renuncia a se auto afirmar diante de Deus, mas reconhece o primado de Deus
na salvação. Deus vêm ao encontro do homem (Cf. LADARIA, 1998, p. 109).
No século V,
Santo Agostinho endossa o que São Paulo apresenta nas suas epístolas. A própria
experiência da renascença de Paulo, narrada no capítulo nove de Atos dos
Apóstolos, juntamente com a sua própria experiência de conversão, marca
profundamente a visão acerca da graça divina como algo que atua no íntimo da
pessoa.
Santo
Agostinho, o doctor gratiae, como é conhecido, ao comentar a Carta aos
Romanos, mais especificamente sobre a lei e o pecado, afirma:
Depois de dizer que o pecado e a morte contaminaram todo o gênero humano
por meio de um só homem e que a justiça e a vida eterna vieram por um só homem,
sendo aquele Adão e insinuando ser este Jesus Cristo, afirma: Ora, a Lei interveio
para que avultassem as faltas; mas onde avultou o pecado, a graça superabundou,
para que, como inspirou o pecado na morte, assim também imperasse a graça, por
meio da justiça, para a vida eterna, graças a Jesus Cristo, nosso Senhor
[...]Aquele que elogia o poder curativo de um remédio não está afirmando que
são úteis as doenças e os ferimentos, dos quais o remédio cura o ser humano.
Mas quanto maiores são os elogios ao remédio, tanto mais se execram e se temem
os ferimentos e as doenças dos quais liberta aquele que é elogiado. Do mesmo
modo, o louvor e a exaltação da graça representam execração e condenação dos
delitos [...]. Assim, a Lei interveio para que avultassem as faltas, a fim de
que, deste modo convencido e confundido, o homem percebesse a necessidade não
apenas de um mestre, mas de Deus que o ajude, pelo qual seus passos sejam
dirigidos para evitar o domínio da iniquidade sobre ele e se curasse procurando
a ajuda divina (AGOSTINHO, p. 20).
Esta doença
que necessita de cura, que Santo Agostinho se refere é o pecado original (vitium
originis), que corrompeu a natureza humana, tornando-a concupiscente. Está
perversão causada pelo pecado é sanada pela graça do batismo, no qual, é
restaurada a imagem e a semelhança de Deus no ser humano (Cf. NOCKE, p. 22).
Com o auxílio do Espírito Santo, dom por excelência, a lei deixa de ser,
apenas, uma lei extrínseca, que aguça o apetite humano para o pecado, e se
torna intrínseca, que nos dizeres do profeta Ezequiel, a lei não gravada em
tábuas de pedra, mas no coração (Cf. Ez 36,26), pois o amor foi derramado no
coração pelo Espírito Santo que nos foi dado (Cf. Rm 5,5). É o amor como dom do
Espírito Santo que possibilita amar e praticar a lei. Nesta mesma direção
aponta a encíclica Deus Caritas
Est, quando afirma, que no princípio do ser cristão não há uma decisão
ética, ou uma grande ideia, mas um encontro com um acontecimento, com uma
Pessoa, que dá um rumo decisivo que orienta toda a vida do crente. Esta Pessoa
é Jesus (Cf. DCE n.º 1).
Uma outra
epístola paulina, aos Filipenses, no diz: “Pois é Deus quem opera em vós o
querer e o operar, segundo a sua vontade” (Fl 2,13). Diante do que foi
explicitado acima, abordaremos a seguir a relação entre natureza e graça. Se a
salvação (justificação) é obra de Deus, qual o papel do homem diante desta
graça? Há espaço para a liberdade humana perante esta graça? É o que
abordaremos a seguir.
5.
Natureza e Graça
A questão do
caráter gracioso da salvação já está bem assentada, não se põe em dúvida.
O problema, porém, é como o livre arbítrio se orienta para a recepção da
graça, visto que a graça não cai simplesmente em cima sobre o ser humano. O ser
humano, portanto, não é passivo diante da graça, mas receptivo, ou seja,
inteiramente ativo, de certa forma. Ele acolhe-a como destinatário da graça e
recebe-a segundo a estrutura de sua criaturalidade. Se, por conseguinte, o ser
humano é o ser do livre-arbítrio, então a graça deve ser assumida pela vontade
segundo sua composição liberal. Aqui se diz, pois: a graça não é apenas uma
relação que Deus institui para nós, mas também o princípio com o qual nossa
vontade responde perante a oferta de Deus. A graça é, portanto, o princípio de
nosso agir ou, dito de outra maneira, o princípio da virtude. O livre-arbítrio
deve, portanto, a seu modo, preparar-se para a recepção da graça (MÜLLER, 2019,
p. 556).
A preparação
do homem para receber, acolher a graça já é em si uma obra da graça, ou seja,
ela é necessária para nos inspirar e manter nossa colaboração na justificação
pela fé e na santificação pela caridade. Deus mesmo conclui em nós o que ele
começou pela sua graça (Cf. CIC n.º 261).
Santo
Agostinho, no seu livro intitulado Confissões, possui uma frase que se levada
ao radicalismo, pode dar a compreensão de uma relativização da Lei divina, ou
um solapamento da liberdade humana: “Concede-me o que me ordenas, e ordena o
que quiseres” (AGOSTINHO, 1998, p. 178). Diante dos debates contra Pelágio, mas
principalmente pela própria experiência pessoal do santo, sua base filosófica
perpassando pelo maniqueísmo (embora o tenha superado na sua conversão), pelo
neoplatonismo e, somada a isto, o seu pensamento teológico acerca do pecado
original e suas consequências a partir da Carta aos Romanos, a sua visão
antropológica possui um cunho pessimista.
Santo Tomás de
Aquino, sem negar o que escrevera Agostinho, aprofunda o tema da relação entre
graça e natureza. A partir de uma antropologia otimista, o Aquinate, desenvolve
esta relação enfatizando que “gratia non tollat naturam, sed perficiat”
(S. th. I/II, q. 109 a. 7).
Por natureza, Tomás entende a essência da coisa, considerada enquanto
seu princípio de operação. Portanto, propriamente falando, a natureza não
significa o movimento em si, mas o princípio do qual ele procede. Assim, a
natureza dos seres inanimados, isto é, o princípio do movimento que os anima, é
a sua forma natural; do mesmo modo, a natureza dos animais é a sua forma
sensível, e a natureza humana especifica-se pela capacidade de agir por si
mesma. Tal qualidade dimana da sua alma racional: intelecto e vontade. Agora
bem, o movimento natural tende a realizar a perfeição do ser, e a perfeição do
ser é o seu fim e bem próprios. Destarte, o movimento da vontade humana, que é
o que mais nos interessa aqui, inclina-se para o fim que lhe é próprio, a
saber, o bem universal. Ora, o primeiro movimento de toda faculdade apetitiva,
inclusive o da vontade, é o que a faz inclinar-se para o seu bem específico.
Este movimento primeiro da vontade e de qualquer apetite é chamado amor, pois o
amor, de uma maneira geral, não é senão querer e buscar o bem (CAMPOS, 2006,
p.3).
E a graça, no
pensamento tomista, designa a relação entre Deus e o ser humano. Necessária
para a salvação do ser humano, a graça, sana a natureza criada e a leva a sua
consumação. Pelo pecado há a perca do seu estado incólume, e por isso,
submetido ao estado de natureza corrupta, deforma gravemente o homem, e a sua
influência não desaparece com mudanças de opinião ou propósitos da vontade,
sendo assim, esta natureza carece da graça não só para alcançar os alvos que
ultrapassam os limites de sua natureza, mas também para fazer o bem natural.
Aquilo que o homem consegue mediante o livre-arbítrio é relativamente
irrelevante. A partir do conceito aristotélico de natureza humana, o doutor angélico
coloca a graça como atuação divina junto a natureza humana, a qual precisa ser
preparada para receber a graça, nisto sendo não só curada, mas também consumada
enquanto natureza curada.
A graça é para
o ser humano. Segundo Tomás, “a graça pressupõe para si a natureza”. Pela graça
as potencialidades humanas têm o seu sentido mais pleno. Conclui-se, que a
contribuição do ser humano para a sua salvação depende totalmente da graça de
Deus e o livre-arbítrio entra em atividade sob a influência da graça divina
(CF. HILBERATH, 2008, p. 29).
É essencial que que a criatura seja o sujeito do amor de Deus. O
livre-arbítrio, no entanto, já completa e inteiramente enfraquecido pelo
pecado, não consegue, por si próprio amar a Deus sobre todas as coisas, ou
unificar-se com ele na unidade do amor. Por conseguinte, o Espírito Santo deve
santificar o livre-arbítrio em suas raízes. Somente mediante esta aptidão da
vontade é que o ser humano consegue, em sua liberdade, transcender para Deus e
cumprir de tal modo a lei moral, que ela se torna um passo rumo a Deus. A
vontade move-se em uma conformação afetada pela graça (MÜLLER, 2019, p.557).
Se a natureza
humana com a sua liberdade busca o bem, pela graça a liberdade humana é
consumada na sua meta, recebe a sua finalização. É a autotranscedência da
liberdade rumo a sua meta que a participação na comunhão do amor trinitário.
A graça de Cristo não entra em concorrência com nossa liberdade quando
esta corresponde ao sentido da verdade e do bem que Deus colocou no coração do
homem. Ao contrário, como a experiência cristã o atesta, -sobretudo na oração,
quanto mais dóceis formos aos impulsos da graça, tanto mais crescem nossa
liberdade intima e nossa segurança nas provações e diante das pressões e
coações do mundo externo. Pela obra da graça, o Espírito Santo nos educa à
liberdade espiritual, para fazer de nós livres colaboradores de sua obra na
Igreja e no mundo (CIC n.º 1741).
Em suma, a
graça atua em nós, não apenas, para iluminar nosso entendimento e fortificar a
nossa vontade, senão para pôr em movimento nossas faculdades, a fim de produzir
atos sobrenaturais. Na prática das ações inspiradas por Deus, seja
interiormente, principalmente através da liturgia; das moções dadas por Deus
nos momentos de oração, seja de maneira extrínseca, como a leitura de um livro
espiritual; uma boa conversa; uma pregação; ou uma música, o homem se une a
Deus, suas ações manifestam a vontade divina (Cf. TANQUEREY, 1961 p. 64),
ofertando a Ele um sacrifício vivo, santo e agradável, um verdadeiro culto espiritual
(Cf. Rm 12,1). É nesta perspectiva, do homem imerso na graça de Deus, que sua
vida se torna um autêntico louvor.
Capítulo 2
O Louvor na História da Salvação
1.
A Compreensão de Louvor no Antigo Testamento
Quando se fala de louvor, normalmente, a
compreensão que vêm junto com a palavra é a oração espontânea que se dirige à
Deus, uma oração de agradecimento pelas coisas que Ele providencia, os seus
benefícios, ou seja, uma oração de ação de graças. Esta compreensão, embora
esteja correta, não abarca a profundidade do que é o louvor. É evidente que “Na
Bíblia o louvor e a ação de graças se encontram num mesmo movimento da alma e,
no plano literário, nos mesmos textos” (DUFOUR, 2013, p. 547). Diante dos
inúmeros benefícios o homem, a partir de um impulso interior, se prorrompe em
agradecimento a Deus e, inevitavelmente, o louva pela sua grandeza e majestade,
reconhece sua bondade e misericórdia, o seu amor que epifanizou-se.
O louvor e a ação de graças despertam as
mesmas manifestações exteriores de alegria, sobretudo no culto, um e outro dão
glória Deus, [...] confessando as suas grandezas. Mas na medida que em que os
textos e o vocabulário nos levam a fazer uma distinção, pode-se dizer que o
louvor pensa mais na pessoa de Deus do que em seus dons; é mais teocêntrico,
mais perdido em Deus, mais próximo da adoração, está no caminho do êxtase. Os
hinos de louvor estão geralmente desligados de um contexto preciso e cantam a
Deus porque Ele é Deus (DUFOUR, 2016, p. 547).
O verbo hebraico no AT que corresponde ao
verbo louvar é o termo halal (הלל) que na sua forma ativa intensivo (piel) traz o conceito de louvar,
admirar, enaltecer, exaltar, lisonjear, elogiar, pode-se associar a este verbo
os conceitos de felicitar, engrandecer, dar graças, glorificar, exaltar,
aclamar, cantar; já na sua forma passiva intensivo (pual) corresponde a ser louvável, digno de louvor, ser elogiado
(Cf. SCHÖKEL, 2018, p.180). Este verbo traz a ideia do elogio, engrandecimento
daquele que louvamos, que no caso, é Deus (Cf. MORAES, 2019, p. 52). Por
exemplo, a palavra aleluia – halelu-Ya
- têm a sua raiz no verbo halal que
significa, louvai a Yah, louvai o
nome de Yahweh (Cf. Sl, 135).
Os
substantivos do verbo halal, como tehillah (תהלה) (louvor, cântico, elogio, fama, prestigio, hino, ação de graças, títulos
de glória) (Cf. SCHÖKEL,
2018, p.697), como mahalal (מהלל)
(louvor, vanglória) (Cf. STRONG, 2002, p.588) são usados em muitas
passagens. Eis alguns exemplos:
“E tu és o santo habitando entre os louvores de Israel” (Sl 22,3).
“Como teu nome, ó Deus, também teu louvor atinge os limites da terra” (Sl
48,11).
“Cantai a Yahweh um canto novo, cantem o seu louvor desde as extremidades
da terra” (Is 42,10).
“Quem é igual a ti, ilustre em santidade? Terrível nas façanhas, hábil em
maravilhas’ (Ex15,11).
“Há fornalha para a prata e forno para o ouro, e o homem vale o que vale
a sua fama’ (Pr 27,21).
“Não lhe concedais descanso enquanto ele não estabelecer firmemente
Jerusalém e não fizer sair dela objeto de louvor na terra” (Is 62,7)
Em levítico (19,24) hilluwl é empregado como oferta de
louvores ao Senhor, sacrifício ao Senhor. Nesse sentido, outro verbo
utilizado para louvar é todah (advindo de yadá,
significando jogar, lançar, é desse verbo também que vem a palavra torah,
ensinamento, que se tornará nómos, na língua grega, significando
lei, e dará o nome ao Pentateuco). Como no Sl 26,7, “entoar com alta voz, os
louvores e proclamar tuas maravilhas”. Utilizado também para
qualificar “sacrifício de louvores” (Lv 22, 19). Portanto evoca o contexto
litúrgico como no salmo 42, 4: “Lembro-me
destas coisas —e dentro de mim se me derrama a alma —, de como passava eu com a
multidão de povo e os guiava em procissão à Casa de Deus, entre gritos de
alegria e louvor, multidão em festa”. (MORAES, 2010)
No AT o louvor brota dos lábios do povo de
Israel para reconhecer as manifestações do amor de Deus. Estas palavras são uma
tentativa para descrever, em forma de oração, sua grandeza: “Ah! Yahweh, Deus do céu, ó Deus grande e
temível, que guarda a aliança e a misericórdia para com aqueles que o amam e
observam seus mandamentos” (Nm 1,5). O louvor sempre terá esta dimensão de
confissão da grandeza de Deus, sua justiça, sua bondade, sua força, suas obras
(Cf. Sl 29,4; 92,5; 96,3; Ex 15,21; 1Sm 2,1; Is 25,1), e por meio dela
chegar-se ao seu autor.
Grande parte dos salmos
é, portanto, dedicada ao louvor de Deus. Evitou-se de propósito a palavra
agradecimento. Qual a distinção entre louvor e agradecimento? No louvor nós nos
voltamos inteiramente para um outro; no agradecimento, vemos as coisas do nosso
ponto de vista. O louvor emana, portanto, da liberdade e do entusiasmo
espontâneo, louvor e agradecimento pressupõe duas estruturas diferentes da
condição humana. É o espaço caracterizado pela comunhão que exige o louvor.
Para o homem do Antigo Testamento a precedência do louvor sobre o agradecimento
provém da ideia da grandeza de Deus. Mesmo que o homem receba alguma coisa do
seu Deus, ele o diz olhando não para o seu eu, mas para Deus e para a sua
grandeza, que se manifesta também na sua bondade. Assim o louvor é
simultaneamente também agradecimento (SCHILLING, 1978, p. 395).
Nas manifestações de Deus o homem
veterotestamentário descobre o que é Deus para si, e em contrapartida, o que é
o homem para Deus, é a dinâmica da relação entre Deus e o ser-humano, e a
relação de ambos com as demais criaturas. O salmo oito é um exemplo desta
compreensão supracitada.
O Sl 8 parece ser um hino que exalta Deus, o verdadeiro protagonista e o
ser humano é colocado numa relação com o próprio Deus. A própria criação nos
coloca uma pergunta: o que é o ser humano no infinito do universo? Através da
magnificência e ao ritmo do universo, está presente a fidelidade, o poder e o
esplendor de Deus com a obra das suas mãos. A grandeza do ser humano é
descoberta pelo salmista pelo confronto com a ternura e a fidelidade que Deus
tem para com o próprio ser humano. A dignidade do ser humano reside em ser
“imagem de Deus” (Gn 1, 26-27), é “rei” do universo, coroado de glória, daí que
podemos já realçar aqui a dinâmica do louvor que este salmo encerra (FILIPE,
2014, p. 7).
“Psicologicamente, o louvor é a atitude adulta e madura de quem sabe
olhar o outro para expressar o próprio agradecimento, é a atitude nobre do
coração humano, tanto mais pura quanto mais desinteressada” (SARTORE,
2002, p. 820).
Um outro termo
veterotestamentário, embora não seja uma tradução literal do verbo louvar, mas
se refere a ele, é palavra hebraica berakah (ברכה) que podemos traduzir
por benção, dar graças a Deus, bendizer, celebrar (Cf. SCHÖKEL, 2018, p.120). A
benção como promessa para os que obedecerem aos mandamentos de YHWH, sendo que
a desobediência acarreta a maldição (Cf. Dt 11, 26-28). A benção no seu
significado descendente é dotar de virtude salvífica, e, de fato, no hebraico, berakah não significa somente o ato de
abençoar ou a palavra de benção, mas também as bênçãos que daí decorre: êxito,
força. Ademais, deste significado, a benção possui um sentido ascendente, que é
movimento do homem de bendizer a Deus, pois a certeza que sua vida está em suas
mãos, o estimula a expressar sua fé, sua confiança, gratidão e esperança no
render glória e louvor a Deus. Este sentido da berakah, de louvar a Deus
aparece no livro do profeta Daniel, mais precisamente no cântico dos três
jovens na fornalha ardente, dezenove vezes (Cf. Dn 3,52-90). Esta conotação
possui, justamente, o significado de louvar, celebrar, constitui a atitude do
homem no contato com Deus, o reconhecendo como criador, benigno, misericordioso
e justo e, como tal, digno de louvor e de gratidão. Bendizer a Deus é
glorificá-lo por tudo e em tudo, um bendizer com a própria vida, tanto no culto
quanto na oração pessoal ou em família (Cf. SARTORE, 2002, p. 124-125).
Berakah[...] é um dos termos que condensa toda a
riqueza e originalidade do pensamento hebraico; talvez o termo por excelência,
no qual se resume a antropologia hebraica: o seu modo de colocar o homem diante
de Deus e defronte ao mundo. De fato, a berakah
define a tríplice relação, trata-se, na realidade, de uma única relação, que se
poderia definir como triangular[...] Em relação ao homem e ao mundo, Deus é a
“fonte” e a “norma”: cria o homem e o mundo e estabelece sua modalidade de
usufruto e de multiplicação. Em relação a Deus e ao mundo o homem é o
interprete e beneficiário: é objeto da atenção divina e destinatário dos bens
da terra. Em relação a Deus e ao homem, o mundo é sacramento e dom: sinal da
benevolência divina e dom concreto para o homem [...]. Deste modo a berakah capta a verdadeira finalidade do
mundo e se põe como condição para a realização do Reino. Sem ela o mundo fica
opaco, fechado em si e destinado ao mal: quem usa os bens deste mundo sem
recitar uma benção, profana uma coisa santa. Graças a ela, ele recupera seu
esplendor original, descobrindo em tudo a presença do Sentido, isto é, do
Sagrado (SANTE, 2004, p.47).
Esta
relação entre benção e louvor pode ser percebida na benção que Abrão recebe de
Melquisedec após derrotar Codorlaomor: “Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo
que criou o céu e a terra, e bendito seja o Deus Altíssimo que entregou teus
inimigos entre tuas mãos” (Gn 14,19-20). A nota de rodapé da Bíblia de
Jerusalém traz o seguinte comentário:
A benção é palavra eficaz
e irrevogável que, mesmo pronunciada por um homem, transmite o efeito que nela
se exprime, pois é Deus quem abençoa. Mas o homem também por sua vez, bendiz a
Deus, louva sua grandeza e sua bondade, ao mesmo tempo que deseja que elas se
firmem e se estendam. Aqui as duas bênçãos são associadas. O culto israelita
comportava umas e outras (2002, p. 52)
Tanto Abrão é bendito
pelo Deus Altíssimo criador do céu e da terra, quanto o próprio Deus é bendito
pois entregou os inimigos nas mãos de Abrão. Assim como no salmo oito, esta
perícope aponta para esta relação entre o homem e Deus. Abrão é bendito
enquanto objeto da benevolência, das bênçãos de Deus, em outras palavras, da
sua graça; e Deus é bendito porque o seu agir manifesta o seu ser.
Nesse ritmo completo
aparece a verdadeira natureza da benção; ela é uma explosão extática diante de
um eleito de Deus, mas não se detém no eleito e remonta até o Deus que se
revelou nesse sinal. Ele é o baruk
por excelência, o Bendito; ele possui toda benção. Bendizê-lo não significa
acrescentar coisa alguma à sua riqueza, é deixar-se arrebatar pelo entusiasmo
dessa revelação e convidar o mundo a louvá-la. A benção é sempre uma confissão
pública do poder divino e ação de graças por sua generosidade (DUFOUR, 2013, p.
107).
Para o pensamento judaico não existe algo que
não seja objeto da berakah. Todas as
realidades que envolvem a vida humana podem compreendidas como bênçãos de Deus.
O sofrimento, a injustiça, a doença ou o desespero são motivo para a benção e o
louvor.
A berakah é a expressão de uma inteligência transparente, capaz de
ver toda a realidade sob uma nova luz. Ela é a maior de todas as atividades
porque tem o poder de “fazer novas todas as coisas” (cf. Ap 21,5). Se ela é
continuamente recomendada, não é pelo gosto de uma casuística infantil, mas
pela intuição de sua dimensão reveladora (SANTE, 2004, p.52).
Além de bendizer a Deus pelos frutos da terra,
o judeu piedoso, o faz também pela própria Torah,
porque ela, do mesmo modo que os frutos da terra, alimenta e alegra o coração
do homem, pois estes, por si só, não são suficientes para saciar o homem, que
não vive só de pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus. Por meio dela,
se descobre a finalidade dos bens da terra. Se a Torah para Israel é motivo de bendizer a Deus, o torna de modo
especial pelos principais eventos nela narrados: a aliança, a libertação do
Egito, o templo, a promessa messiânica, e em especial esta última, porque ela
que torna compreensível o imperativo rabínico do louvar até mesmo pelo mal, tal
qual se fazem pelo bem, não porque encontra prazer no sofrimento, mas pela
inabalável esperança messiânica. Com este ato de fé o mal, que historicamente
possui aparência de vencedor; é vencido em nível escatológico. (Cf. SANTE,
2004, p.52).
Por meio de Abraão serão benditas todas as
nações da terra (Cf. Gn 12,3), portanto, como foi dito no primeiro capítulo, a
promessa feita a Abraão de uma benção que é destinada a todos, tendo ele como
instrumento, manifesta o desejo salvífico universal de Deus. Esta promessa terá
o seu cumprimento em Jesus, fruto bendito do seio bendito de Maria (Cf. Lc
1,42).
2.
O Caráter Cristológico do Louvor no Novo Testamento
Embora seja possível encontrar em cada livro
do AT uma estrutura própria, uma teologia de cada hagiógrafo, todo o AT
encontra a sua plena realização, em definitivo, somente no âmbito do NT,
portanto, a sua consumação. No entanto, o que foi dito acima acerca dos
conceitos de louvor e benção no AT, de modo a formar um binômio, permanecem no
NT, todavia, com o evento Cristo, a plenitude da Revelação; todo o louvor
(benção) assume um caráter cristológico.
O louvor é suscitado pelo dom de Cristo, por
ocasião do seu poder redentor. É esse o sentido do louvor angélico no natal, o
louvor das multidões depois dos milagres realizados, e neste mesmo sentido
aclamação com hosanas na entrada messiânica de Jesus em Jerusalém (Cf. Mt
21,9). Nas epístolas paulinas permanecem resquícios de hinos primitivos que
manifestam o louvor cristão dirigido a Deus Pai que já revelou o mistério da
piedade (Cf.1Tm 3,16) e que fará surgir o retorno de Cristo (Cf.1Tm 6,15s); um
louvor confessional do Mistério de Cristo e de sua Salvação (Cf. Fl 2,5-11; Cl
1,15-20; 2Tm 2,11), transformando-se assim em verdadeira confissão da fé e da vida
cristã. Sendo assim, o louvor é cristológico também no sentido de que se eleva
a Deus com Cristo e nele (Cf. DUFOUR, 2013, p. 550).
O Pai entregando-nos o seu próprio Filho
entregou-nos tudo, não nos falta dom algum da graça (Cf. 1Cor 1,7), mas abençoados
com toda sorte de bênçãos espirituais (Cf. Ef 1,3). E nele rendemos graças ao
Pai por seus dons (Cf. Rm 1,8; Ef 5,20; Cl 3,17). Estes são os dois movimentos,
o da graça que vêm ao encontro do homem e o louvor do homem que sobe a Deus,
recapitulados em Jesus Cristo. Nas suas obras, Deus se autocomunica, “a
revelação é em si mesma não só Deus manifestando-se pessoalmente a si mesmo,
mas ao mesmo tempo conteúdo objetivo que é oferecido ao crente” (FISICHELLA,
2000, p.86).
A consumação da revelação se torna fonte do
louvor. A DV no n.º 4, nos diz:
Eis por que Ele, ao qual
quem vê vê também o Pai (cf. Jo14,9), pela plena presença e manifestação de Si
mesmo por palavras e obras, sinais e milagres, e especialmente pela sua morte e
ressurreição dentre os mortos, enviado finalmente o Espírito de verdade,
aperfeiçoa e completa a revelação e a confirma com o testemunho divino que Deus
está conosco para libertar-nos das trevas do pecado e da morte e para
ressuscitar-nos para a vida eterna.
A Revelação toma configurações personalistas,
é a Pessoa de Jesus, e por isso, o louvor no NT evidencia a inserção do Verbo
na história, que consciente de sua missão confiada pelo Pai, a realiza em plena
obediência filial, a fim de possibilitar que o homem participe da comunhão trinitária
(Cf. FISICHELLA, 2000, p. 29).
O próprio Jesus se dirige Pai em louvor ao
perceber que são os pequeninos destinatários da Revelação. O verbo grego, aqui
utilizado, é exomologeó, que equivale
dizer: eu concordo plenamente, confesso, admito, agradeço, louvo.
Naquele momento, ele
exultou de alegria sob a ação do Espírito Santo e disse: Eu te louvo, ó Pai,
Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e
entendidos, e as revelastes aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu
agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai e ninguém conhece quem é o Filho senão
o Pai, e quem é o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar
(Cf. Lc 10,21-22).
Jesus tendo sua origem em um povo que está
imerso em oração, torna-se natural ver Jesus como um orante, mas não somente a
partir dos textos bíblicos que demonstram isso explicitamente (Cf. Mc 1,35;
6,46; Lc 4,42; 6,12), mas também, a partir do ambiente sociocultural e
religioso que ele viveu. De modo geral, o dia de um israelita começava ao
nascer do sol, e terminava ao pôr-do-sol, com um olhar para Deus, e de manhã e à
tarde os homens israelitas recitavam o credo, o Shemá (Cf. Dt 6, 4-9; 11,13-21; Nm 15,41), estruturados por
bênçãos, em seguida rezava-se o Thephilá,
um hino em forma de oração que constava de bênçãos, ainda havia um terceiro
tempo de oração depois do meio-dia (Cf. Dn 6,11-14). Pelas 15 horas da tarde,
oferecia no Templo o sacrifício da tarde e rezava-se em todo lugar no país a Thephilá (Cf. At 3,1; 10,3.30). A estas
orações diárias fixas acrescentavam-se as preces à mesa antes e depois das
refeições. Jesus, originário de uma família piedosa, cresceu neste ambiente da
fé do seu povo, e foi o seu modo de agir durante o seu ministério público (Cf.
JEREMIAS apud GOURGUES, 1984, p. 86). No evangelho de Lucas temos uma destas
cenas da vida de Jesus que em dia de sábado entra na sinagoga e levanta-se para
fazer a leitura pública do texto sagrado, e ao ler um trecho do profeta Isaias
compreende que nele está a sua biografia, e todos se admiravam das palavras
cheias de graça que saiam de sua boca (Cf. Lc 4, 16-22). Jesus agia com
autoridade (exousia) (Cf. Mt 7,19) ou
seja, o seu ser que sai para fora (Cf. Lc 8,46), a integridade de suas ações
com o seu interior.
Jesus aparece muitas vezes pronunciando a berakah. No grego o termo para traduzir
será eucharistia e eulogia, que no português será
traduzido por benção, ação de graças. A sua formulação pode ser tanto na forma
passiva; Sede bendito Senhor nosso Deus; ou na forma ativa; Eu vos bendigo
Senhor nosso Deus. Na narração da Eucaristia Jesus pronuncia uma berakah: “Estando eles a comer, tomando o pão e proferindo a benção, partiu
e deu-o a lhes e disse: ‘Tomai isto é o meu corpo’. E, tomando um cálice e
dando graças, deu-lhes e todos beberam dele” (Mc 14, 22-23); na multiplicação
dos pães e dos peixes: “E tomando os sete pães, deu graças, partiu-os e dava-os
aos seus discípulos[...]. E havia alguns peixinhos. E, abençoando-os, disse que
também o distribuíssem” (Mc 8,6-7); ao receber as criancinhas: “Então,
abraçando-as, abençoou-as, impondo as mãos’ (Mc 10,16); na ressureição de
Lázaro: “Pai dou-te graças porque me ouviste” (Jo 11,41).
No NT aparecem exemplos de oração de bênção
cristã: o “Magnificat”, o “Benedictus, o “Nunc dimitis”, assim como algumas
cartas de São Paulo, como o começo de Ef 1: “Bendito seja Deus, Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo (benção ascendente), que do céu nos cumulou com toda
espécie de bênçãos espirituais (benção descendente)”. Agora o louvor se centra,
não tanto na libertação do Egito ou na aliança primeira de Israel, mas na sua
pessoa e na salvação de Cristo Jesus (ALDAZÁBAL, 1993, p. 248).
O pensamento paulino nos aponta para a
constância do louvor a Deus, um convite que nos é feito para que tudo o que
fizermos em palavras ou ação, seja feito em nome do Senhor Jesus, por ele dando
graças a Deus Pai (eucharisteó) (Cf.
Cl 3,17).
Observai rigorosamente,
portanto, como caminhais, não como desprovidos de sabedoria, mas como
sábios[...] Por isso não vos torneis insensatos, mas consciencializai o que é a
vontade do Senhor [...] enchei-vos de Espírito falando uns com os outros por
meio de salmos e hinos e cantos espirituais, cantando e dedilhando música com o
vosso coração a Deus, dando graças sempre por todas as coisas, em nome do Nosso
Senhor Jesus Cristo, a Deus Pai (Ef 5, 15-20).
Conclui-se que a concepção de louvor, na
unidade do AT e do NT, comporta está dimensão do êxtase humano que se prorrompe
na oração de reconhecimento da grandeza de Deus, do seu mistério que toca o
homem em eventos historicamente constatáveis que se tornam sinais da sua proximidade,
da sua autodoação (Cf. NOCKE, 2008, p. 174) e, por isso, atrela-se ao conceito
de louvor a ação de graças, em outras palavras, é dizer que só é possível o
reconhecer a grandeza, a majestade, a justiça, a santidade de Deus porque Ele
se revela e se doa ao homem concedendo a sua graça –hen-, tanto no sentido da ação benevolente; do inclinar-se de Deus;
sua kenosis, quanto da graça que atua
no interior do coração do homem transformando-o, assim sendo, suas palavras
devem estar em conformidade com a sua vida. “A glória de Deus é o homem que
vive e a vida do homem consiste na visão de Deus” (IRINEU DE LIÃO, 1995, p.
204).
Exorto-vos, portanto,
irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como
sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual. E
não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos renovando a vossa mente,
a fim de poderdes discernir qual a vontade de Deus, o que é bom, agradável e
perfeito (Rm 12,1-2).
A expressão paulina “culto espiritual” (loghikè latreia) possui uma pluralidade de significados que estão
profundamente coerentes e complementares entre eles. Em seu sentido literal,
pode ser compreendida como culto segundo o logos,
sendo o Logos encarnado o Cristo oferece uma conotação fortemente cristológica
à expressão. Pode ser traduzido, ainda, por um culto espiritual que designa o
verdadeiro culto, que empenha o homem em sua inteireza, em oposição a um culto
exterior e formal. Por fim, pode-se traduzir por um culto de palavra, ou culto
realizado através de palavras, que faz emergir a ideia da manifestação ritual
do culto existencial que acontece mediante a um culto de palavra, de oração
(Cf. BOSELLI, 2014, p.151).
O
louvor como epifania da graça acontece, se dá através desta dimensão latrêutica
da vida do homem, a totalidade do seu ser se volta para Deus, e será mediante a
liturgia que ele celebrará a salvação operada por Cristo.
3.
O Louvor na Liturgia Cristã
O conceito de
liturgia do CVII, presente na SC, apresenta a natureza da liturgia em chaves de
teologia bíblica. Este enfoque não é outro senão o de apresentar a revelação
como plano salvífico de Deus. É a autocomunicação divina compreendida como
história da salvação, cujo ápice é a obra de redenção e perfeita glorificação
realizada por Jesus Cristo através do Mistério Pascal, que teve como prelúdios;
como símbolos, os acontecimentos maravilhosos realizados no AT (Cf. SC nº. 5).
Estes acontecimentos maravilhosos expressam que a história de Deus com os
homens se concretiza mediante eventos, atos e encontros, e estes se tornam
sinais da proximidade de Deus que salva, santifica e transforma (Cf. NOCKE,
2008, p. 174). A história da salvação é compreendida em processos, em momentos,
e o tempo da Igreja se situa como o terceiro momento, ou, a última etapa da
história salvífica, sendo o AT a primeira etapa, e o segundo momento o tempo de
Cristo. O tempo da Igreja se origina do
tempo de Cristo, da vontade salvífica de Jesus de perpetuar a sua obra. O CIC,
nos diz que, “a liturgia é memorial do Mistério da Salvação” (nº. 1099). É o
conceito de anamnese, em que o Espírito Santo é a memória viva da Igreja (Cf.
Jo 14,26), e por ser o Espírito de Deus, Ele atualiza nas celebrações
litúrgicas as intervenções salvíficas de Deus na história (Cf. CIC nº. 1103).
A Constituição
litúrgica SC repetindo um pensamento comum a muitos Padres, e que está presente
no Evangelho de São João (Cf. 19,30-34), lembra que foi do lado aberto de
Cristo na Cruz que nasceu o sacramento da Igreja (Cf. SC nº. 5)
Para levar a efeito obra tão importante Cristo está sempre presente em
Sua Igreja, sobretudo nas ações litúrgicas. Presente está no sacrifício da
missa, tanto na pessoa do ministro, pois aquele que agora oferece pelo
ministério dos sacerdotes é o mesmo que outrora se ofereceu na Cruz, quanto
sobretudo nas espécies eucarísticas. Presente está pela Sua força nos
sacramentos, de tal forma que quando alguém batiza é Cristo mesmo que batiza.
Presente está em Sua palavra, pois é Ele mesmo que fala quando se leem às Sagradas
Escrituras na Igreja. Está presente finalmente quando a Igreja salmodia, Ele
que prometeu: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, aí estarei no
meio deles” (SC nº. 7).
A obra
realizada por Cristo continua na Igreja, sendo Jesus o missionário do Pai,
também envia os Apóstolos cheios do Espírito Santo para anunciarem o Evangelho
a toda a criatura centralizando a pregação no anúncio gozoso da morte e
ressurreição de Jesus Cristo e, que por meio dela, Deus nos libertou do poder
da morte, transferindo-nos para o seu Reino. E ainda, levarem a efeito do que
anunciavam; a obra da salvação através do sacrifício e dos sacramentos, sobre
os quais gira toda a vida litúrgica (Cf. SC nº. 6).
De fato, a
história para a Sagrada Escritura possui sempre um caráter simbólico
sacramental. Para Israel, os acontecimentos são ações benevolentes de Deus que
dá vida ao mundo, ao homem e aos povos, em que o presente assume o passado e o
supera numa tensão esperançosa para o futuro, e esta concepção bíblica da história
manifesta uma originalidade singular. E Cristo, como plenitude da revelação,
associa a sua pessoa e ao seu ministério homens, para que a obra plenamente
realizada por ele se atualizasse por meio do Espírito Santo na Igreja para o
mundo.
No período que
vai da ascensão à parusia há o tempo e o espaço em que a Igreja com os
sacramentos, recapitula a estrutura sacramental salvífica, expressam a dimensão
celebrativa eclesial, perpetuando na história, a salvação e missão de Cristo.
Sendo assim, a Igreja será o prolongamento terrestre do corpo do Senhor, o
primeiro sacramento, pelo qual é atualizado em visibilidade histórica o dom de
Cristo (Cf. BOROBIO, 1990, p. 295-301). A Igreja, por meio da liturgia, sendo
os sacramentos o ápice, celebra a aliança entre Deus e seu povo reunido, rendem
graças ao Pai fazendo a memória de Cristo, morto e ressuscitado, e invocam o
dom do Espírito Santo.
Tomemos o
sacramento da Eucaristia, mais precisamente, a oração eucarística como modelo
de louvor na liturgia. Primeiramente se louva e bendiz a Deus, dando-lhe graças
pelas maravilhas que ele realizou e continua a realizar na história da salvação
(prefácio), culminando no com o cântico do sanctus,
no mesmo tom de louvor e ação de graças. Deste louvor gozoso, converte-se em
memória de Cristo, damos graças a Deus por ter-nos enviado seu Filho, onde se
recorda (atualiza) a morte e ressurreição de Cristo, imerso no relato da última
ceia. Um louvor memorial. A partir deste, passa-se para a epiclese, uma
invocação a Deus para que envie o seu Espírito Santo sobre a celebração. É uma
epiclese dupla sobre os dons do pão e do vinho para que o Espírito Santo os
transforme no corpo e sangue de Cristo, e uma outra sobre a comunidade que vai
participar deste corpo e deste sangue para formar um só corpo eclesial. Esta
comunhão formada pelo corpo e sangue de Cristo é manifestada, a seguir, pela
intercessão, as orações em que se reza pela Igreja dos bem-aventurados, pelos
defuntos e pelas comunidades do mundo inteiro. É a compreensão de que o sacramento
da eucaristia que constrói a Igreja. E a doxologia final e o amém concluem a
oração (Cf. ALDAZÁBAL, 1993, p. 248).
É nítida a compreensão que na genealogia da
oração eucarística está a liturgia judaica, sendo que alguns autores optam por
algum elemento específico, e cada qual ressaltando um aspecto. Segundo
Aldazábal, citando P. Audet, é a berakah
que está na raiz do processo que levou até a nossa oração. Para outros autores
não é a berakah o principal
ascendente da oração eucarística, mas a birkat
ha mazon, cuja ideia central não seria tanto a admiração, mas a ação
de graças. A birkat ha mazon
é uma oração tripartite: benção, ação de graças e petição. Enfim, para
Giraudo, o que teria influenciado no desenvolvimento das anáforas cristãs é a todah, a oração de louvor com tom
sacrificial, que inclui uma confissão tanto do próprio pecado como da grandeza
de Deus. O que fica claro é que as anáforas cristãs participam do espírito de
louvor, ação de graças, admiração, glorificação, confissão sacrificial e
petição, o que faz um modelo magnifico de oração, tanto teológica quanto
humana, porque dão primazia à obra de Deus, cuja plenitude é a obra salvadora
de Cristo (Cf. ALDAZÁBAL, 1993, p. 249-252).
No Ofício
Divino, que é prolongamento litúrgico dos mistérios celebrados mediante as
várias horas do dia, tem o seu início com a invocação: Domine, labia mea aperies. Et os meum annuntiabit laudem tuam (Senhor
abre os meus lábios, e minha boca proclame o teu louvor). Este versículo do
salmo 50 (51), colocado pela Igreja como primeiro ato e primeira palavra do
orante, não tem a função, simplesmente, de dar início a oração, mas o de ser guia
inicial da oração. A invocação “Abri os meus lábios ó Senhor”, é a própria
essência da oração cristã, porque expressa a consciência de que é Deus a fonte
da oração. Ele é a origem do louvor (Cf. BOSELLI, 2014,
p.152).
Todavia, a Liturgia
é o cume para o qual se dirige a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte
donde emana toda a sua força. Pois os trabalhos apostólicos ordenam-se a isso:
feitos pela fé e pelo batismo filhos de Deus, juntos se reúnam, louvem a Deus
no meio da Igreja, participem no sacrifício e comam a Ceia do Senhor. A própria
Liturgia, por seu turno, impele os fiéis que, saciados dos “sacramentos
pascais”, sejam “concordes na piedade”, reza que “conservem em suas vidas o que
receberam pela fé”, a renovação da Aliança do Senhor com os homens na
Eucaristia solicita e estimula os fiéis para a caridade imperiosa de Cristo. Da
liturgia, portanto, mas da Eucaristia principalmente, como de uma fonte, se
deriva a graça sobre nós e com maior eficácia é obtida aquela santificação dos
homens em Cristo e a glorificação de Deus, para a qual, como a seu fim, tendem
todas as demais obras da Igreja (SC, n.º 10)
A liturgia, como afirma a citação acima, é fonte de
toda a vida da Igreja e estimula a prática de uma caridade imperiosa, portanto,
é o impulso para que a fé celebrada esteja em unidade com a vida moral. A
celebração da fé, das maravilhas que Deus realizou, cuja plenitude é o evento
pascal, e que é atualizada pelos sacramentos, tem o seu sentido pleno se
estiver em conformidade com uma vida onde o amor é o maior mandamento (Cf. Mc
12,29-31). O culto a Deus desassociado da vida, os lábios que rezam e louvam
que não está em concordância com o pensamento e a vida moral, é o que Jesus
chama de hipocrisia, e que foi amplamente criticado por Ele (Cf. Mt 23,13-29;
Mc 7,6-13).
Em síntese, conclui-se que a revelação, como
processo de autocomunicação, é a epifania do ser de Deus, manifestando-se como
um Deus de amor, de bondade, de misericórdia, um Deus gracioso, tendo por cume
o Cristo, sua vida, morte e ressurreição, suas palavras e seus atos revelam o
ser de Deus que é amor, que é relação, o Deus da vida. Esta plenitude
manifestada historicamente se atualiza na liturgia, e o homem transformado por
sua graça e vivendo nela num processo de divinização, também exterioriza o seu
próprio ser, suas palavras na liturgia, nas orações e sua vida moral, ou seja,
o seu louvor é epifania graça. Deus se torna para a pessoa o centro, e exerce
nele uma “força centrípeta”, pela qual todas as dimensões do ser do homem se
voltam para Ele.
Capítulo 3
O Louvor como Epifania da Graça
1.
O que é
Epifania
O termo epifania possui sua raiz etimológica no grego (ἐπιϕάνεια, de ἐπιϕανής, "visível", derivado de ἐπιϕαίνομαι, "aparecer”). Esta palavra é a junção de duas
palavras: ἐπι um adjetivo absoluto,
que designa “o que está sobre”, de estado em lugar de extensão de movimento a
um lugar, sobre/para (Cf. RUSCONI, 2018, p.186); e do verbo ϕαίνω que significa trazer e levar a
luz, fazer aparecer, mostrar, tornar conhecido, resplandecer, fazer luz para
alguém; em seu sentido passivo, ser mostrado, vir à luz do dia, surgir, nascer
(Cf. RUSCONI, 2018, p.477).
Este termo é comumente utilizado tanto em literatura filosófica quanto
teológica,
Têm o significado de
autonotificação de entrada poderosa no campo da notoriedade e referia-se a
chegada de um rei ou de um imperador. O mesmo termo, porém, servia ainda para
indicar o aparecimento ou manifestação de uma divindade ou de alguma intervenção
prodigiosa sua (SARTORE, 2009, p. 812).
Mircea Eliade[1], utiliza
um termo análogo para falar sobre a manifestação do divino no tempo, que nos
ajuda a compreender a natureza do termo epifania. Diz ele:
O homem toma conhecimento do sagrado porque este se
manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. A fim de
indicarmos o ato da manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania.
Este termo é cômodo, pois não implica nenhuma precisão suplementar: exprime
apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de
sagrado se nos revela. Poder-se-ia dizer que a história das religiões – desde
as mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número
considerável de hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas. A
partir da mais elementar hierofania – por exemplo, a manifestação do sagrado
num objeto qualquer, uma pedra ou uma árvore – e até a hierofania suprema, que
é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de
continuidade. Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de
algo “de ordem diferente” – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo –
em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo “natural”, “profano”
(1992, p. 13).
A própria compreensão que Israel tem acerca da redenção
remete para essa ideia de entrada do sagrado no tempo, ou seja, uma intervenção
divina em prol do homem.
O judaísmo (...) sempre se ateve a um conceito
de redenção que a concebia como um processo que se realiza publicamente no
palco da história e no meio da comunidade, em suma: que se realiza de maneira
decisiva no mundo do visível e não pode ser concebido sem essa aparição no
visível (SCHOLEM apud KESSLER, p. 222)
Liturgicamente, mais especificamente, dentro
do calendário litúrgico, no ocidente a palavra epifania está associada a festa
celebrada no dia seis de janeiro em que se celebra os Três Reis Magos que
visitam Jesus. Teologicamente esse termo possui o sentido de indicar a manifestação de Deus no tempo.
Neste sentido pode-se dizer que a Revelação, o autocomunicar-se de Deus é
epifania.
Para quem caminha na fé do Deus Trindade o
tempo é a categoria na qual se realiza o encontro salvífico entre a pessoa
crente e o mistério trinitário, que se fez história. A eternidade entrou no
tempo através do mistério da Encarnação; por isso, em Jesus Cristo, o Verbo
encarnado, o tempo passa a ser uma dimensão de Deus, de modo que todos os dias
e todos momentos são abarcados pela sua Encarnação e ressurreição, e se
encontram na plenitude dos tempos (BORRIELLO, 2003, p. 258).
Deus se manifesta para levar o homem a
plenitude de vida, deste modo, a epifania, no âmbito da economia salvífica têm
por natureza levar o homem a comunhão com Deus, consigo e com o seu semelhante.
O fato do Verbo se fazer carne e armar sua tenda entre nós (Cf. Jo 1,14) faz
com que o tempo e o espaço sejam o lócus
da manifestação de Deus. Isso permite que a liturgia celebre estas
manifestações de Deus. O mysterion
entra no tempo e no espaço pela a atualização sacramental dos benefícios
divinos, especialmente os realizados pelo Cristo, através da Igreja. Os
sacramentos são epifanias que geram vida no homem, o colocam em estado de
graça.
A palavra chave para compreendermos em qual
sentido que a liturgia é, em si mesma, epifania da graça é
celebração-atualização. A liturgia não deve ser compreendida unicamente em seu
sentido ritual de comemoração de datas em que se recorda os eventos da história
da salvação, mas, a presença na forma sacramental-ritual, principalmente, do
mistério de Cristo. Voltando para a definição de teofania (hierofania) de
Mircea Eliade, esta é a entrada do sagrado no tempo e, para nós cristãos, de
fato, o tempo é um componente de suma importância, pois é nele que se
desenvolve a salvação. Deste modo, a Igreja mediante os mistérios celebrados
atualiza, por ação do Espírito Santo que nela age, essas intervenções divinas,
que desde o seu início possui um caráter gracioso, e que em Cristo essa graça se
manifestou na reconciliação dos homens com Deus por ação do seu Espírito, ou
seja, a vida divina no homem, a graça de restabelecer a comunhão natural que
fora perdida por Adão e elevá-la a um grau ainda maior que é o da filiação
(divinização). Portanto, a liturgia possibilita que os cristãos de todos os
tempos entrem em contato com esses eventos salvíficos plenificados por Jesus,
de modo que sejam repletos da graça da salvação (Cf. AUGÉ, 2004 p.281)
2.
A Epifania da Graça de Deus na Liturgia
O Logos
do Pai entra no tempo para levar a humanidade a plenitude, ou seja, nos trazer
a salvação e comunicar a vida divina. No profeta Ezequiel lemos:
Borrifarei água sobre vós e ficareis puros;
sim, purificar-vos-ei de todas as vossa imundícies e de todos os vossos ídolos
imundos. Dar-vos-ei coração novo, porei no vosso íntimo espírito novo, tirarei
do vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Porei no
vosso íntimo o meu espírito e farei com que andeis de acordo com os meus
estatutos e guardeis as minhas normas e as pratiqueis (Ez 35,25-27).
“Essa água pura que regenera é a da graça que
nos vêm do Salvador, do qual é dito no Evangelho de São João (1,16): é de sua
plenitude que todos temos recebido graça sobre graça” (GARRIGOU-LAGRANGE, 2011,
p. 22).
Jesus Cristo realiza tal missão desde a sua
encarnação mediante as suas palavras e gestos, que tem por plenitude o seu
Mistério Pascal. Jesus, o enviado do Pai, também envia os apóstolos para que,
cheios do Espírito Santo, não somente proclamem os feitos de Jesus a toda
criatura, que por meio de sua morte e ressurreição redimiu a humanidade
libertando-nos do demônio, “mas ainda para levarem a efeito o que anunciavam: a
obra da salvação através do Sacrifício e dos Sacramentos, sobre os quais gira
toda a vida litúrgica” (SC, n.º 6). Esse efeito da salvação operada por Cristo
chega a nós mediante os sacramentos, ou seja, é a graça de Deus, que tem por
ápice a epifania da encarnação do Verbo e a sua obra, que é atualizada através
dos sacramentos da Igreja que foram instituídos pelo próprio Cristo. Assim como
Cristo é o sacramento do Pai, a Igreja é o sacramento do Cristo, dito de outra
forma, “Cristo o sacramento original, a Igreja, o sacramento fundamental, e os
sete sacramentos individuais auto-realizações (respectivamente realizações
básica) da Igreja” (NOCKE, 2008, p. 190).
Os sacramentos contêm a graça assim como um
efeito na realização de um sinal ou o poder imaginativo do artífice está
contido no instrumento do trabalho – portanto, não fisicamente material ou
mágico. Eles são o meio de encontro pessoal do Deus que se revela e do ser
humano que responde na fé, na esperança e no amor. O modo exato da atuação
sacramental é compreendido de diversas maneiras (MULLER, 2015, p. 448).
A comunicação da graça por meio dos sacramentos,
portanto, não deve ser compreendida em seu sentido de forma restrita em que se
absolutiza a matéria do sacramento caindo em um realismo exacerbado, tampouco
com uma visão de símbolo como algo virtual (não real). Essas polaridades foram
muito debatidas na Idade Média, justamente, pela perda da compreensão profunda
que os Padres da Igreja tinham do aspecto simbólico dos sacramentos. Dizer que
os sacramentos são símbolos é o mesmo que dizer que eles são reais, cuja materialidade
dos sinais sensíveis nos sacramentos comunicam a graça que eles simbolizam,
apontam para a realidade que ultrapassa o que se vê, todavia, já contêm em si a
realidade para a qual remete. Santo Tomás de Aquino rejeitou tanto a visão
realista quanto a visão simbólica enquanto antítese de realidade.
Com sua visão sacramental, que ao mesmo tempo
abarca a linguagem simbólica, cheia de significação e a eficácia da presença
real, Tomás conjuga os diversos aspectos do mistério: a presença de Cristo é
real, embora sacramental, é sacramental mas real; a principal linha de Tomás é
a chave antropológica-sacramental, prenhe de simbologia, realismo e
dinamicidade (ALDAZÁBAL, 1993, P. 232).
Quando se afirma que uma epifania é entrada do
divino no mundo, pressupõe que esta visibilidade ao homem acontece por meio de
sinais pelos quais o homem é capaz de perceber a sua manifestação, deste modo,
os sinais sensíveis são símbolos do sagrado, portanto,
Sinal e graça, segundo esta compreensão, não
estão simplesmente ligados exteriormente em razão de um decreto divino. O
símbolo pertence ao parentesco do mundo da graça: o símbolo é a própria graça
no modo de sua realização no mundo e na história. Os sinais sacramentais,
portanto, não apontam para uma graça diferente deles. O sinal, mediante a
graça, é transformado em espaço de sua visualização temporal (Cf. MÜLLER, 2015,
p. 448-449).
A compreensão dos sacramentos como símbolo foi muito desenvolvida por
Karl Rahner a partir da sua teologia dos símbolos. A dimensão simbólica nos é
essencial para que se possa ter uma visão equilibrada entre graça e sacramento.
O Logos
é o ‘símbolo’ do Pai. Uma cristologia que parte do símbolo poderia
restringir-se quase a exegese do dito: Quem vê a mim, vê o Pai (Jo 14,9) (...)
o Logos humanado é o símbolo absoluto
de Deus no mundo. A Igreja, por sua vez, como a forma em que a Palavra humanada
permanece presente em espaço e tempo, dá continuidade a esta função de símbolo
do Logos no mundo. Por fim, os
sacramentos concretizam e atualizam a realidade simbólica da Igreja (...) com
vistas a vida do indivíduo, e colocam (...) por isso, em correspondência à
natureza dessa Igreja, uma realidade simbólica. A categoria do símbolo não
pretende substituir os enunciados da doutrina escolástica dos sacramentos e,
sim, traduzi-los (e coloca-los simultaneamente num contexto maior); pois no
conceito do símbolo se relacionam objetivamente “sinal” e “causa”, os dois
conceitos básicos da escolástica: o sacramento é a causa da graça (...)
conquanto é seu sinal. (...) Numa só palavra: no sacramento, a graça de Deus se
coloca eficazmente presente ao criar sua expressão, sua concretude histórica
dentro do espaço e tempo, ou seja, seu símbolo (RAHNER apud NOCKE, 20008, p.
192).
Como já foi dito no segundo capítulo, a graça
santificante infundida na alma do homem o justifica. É mediante o batismo que
essa graça acontece, em que o ser humano é assumido ontologicamente na vida de
Deus. Os demais sacramentos faz com que o homem cresça na vida da graça, em
especial a Eucaristia. Os sacramentos possibilitam que o fiel entre em contato
de forma real, mediante os símbolos sacramentais, com os eventos da salvação e,
deste modo, a alma do homem é plenificada, capaz para a comunhão com Deus,
tornando apta para o seguimento de Jesus, para a plena incorporação a Cristo e
a participação na natureza divina (Cf. MÜLLER, 2015, p. 447).
A liturgia epifaniza o amor de Deus revelado
na história atualizando esses eventos em suas celebrações, deste modo,
epifaniza o próprio ser de Deus que é amor. Portanto as celebrações
sacramentais são antecipações do que se viverá na eternidade, em que veremos
Deus face a face. A graça comunicada na liturgia é semente de glória. Portanto,
toda celebração litúrgica, de fato, deve nos colocar nessa dimensão de
estupefação, de louvor, diante da epifania de sua graça. O símbolo sacramental
por serem realidades profundamente arraigadas na cultura humana faz com que o
homem se abra a essa graça cujo interior é transformado. Portanto, há uma
tensão do “já” e o do “ainda não”. Experimenta-se este antegozo do céu, da
comunhão com a Trindade e com os irmãos, mas não em sua plenitude. E, de fato,
a liturgia terrestre cumpre perfeitamente a sua finalidade de ser fonte de vida
da Igreja, esse gozo antecipado nos aponta para a beatitude escatológica, nos
coloca a caminho nesse intervalo de tempo até a sua concretude, e é, justamente,
nesse tempo de peregrinação que o homem é impelido pela graça santificante
fazer com que essa semente de glória faça dar fruto de boas obras.
3. Liturgia como
Fonte da Vida Cristã: Louvor é Epifania da Graça
Os sacramentos, elemento essencial da liturgia, são
celebrações da fé da Igreja, é epifania da fé eclesial e ela se torna expressão
da fé pessoal, de sua interioridade quando o fiel, a partir da evangelização
recebida, também a toma para si, na liberdade e de forma consciente, tornado
tanto expressão quanto resposta ao dom recebido. Se a vida do homem é
plenificada de sentido pela fé, fruto deste encontro pessoal com Deus, este
sentido se exterioriza mediante o celebrar a fé, em outras palavras, celebrando
os sacramentos. A celebração sacramental é a síntese simbólica da vida do fiel,
toda a vida da pessoa imbricada nos sacramentos. O sacramento expressa a fé e a
fé se expressa no sacramento abarcando a pessoa como um todo. Neste sentido é o
ápice história da salvação como história do homem.
A Igreja mediante a liturgia e os sacramentos
exteriorizam esta fé, revive esse processo da autodoação divina em um ambiente
celebrativo de atualização. Cada fiel que pertence a este povo de Deus chamado
Igreja, quando vivencia esta celebração expressa o seu interior que foi tocado
pela graça sacramental, as suas faculdades interiores vontade, memória e
inteligência se exteriorizam reconhecendo a plenitude de vida dada por Deus.
Portanto, assim como os sacramentos são expressão da fé da Igreja o é expressão
da fé do fiel, uma unidade de fé e vida. É possível perceber como a vida humana
com todas as suas relações, enquanto expressão do seu ser no mundo, encontra
seu sentido mais pleno a partir da vida de culto litúrgico.
Como afirma a SC, a liturgia é o cume de toda ação
eclesial e fonte de onde emana todas as suas forças. Os sacramentos impelem os
fiéis a serem concordes no que rezam com a própria vida, chamado a exercer uma
caridade imperiosa de modo que o culto prestado a Deus não seja alienado da
vida (Cf. SC, n.º 10). Louvar a Deus pela celebração, e louvá-Lo com a própria
vida.
Recebidos
os sacramentos, os esforços comunitários e proféticos dos cristãos de
transformar a ordem temporal encontram seu sentido último na glorificação do
Criador. Expressa-se esta doxologia existencial, que consiste em se tronarem os
próprios cristãos, juntamente com a Criação renovada uma oferta agradável a
ele, o Criador. Esta parte, obviamente, inspira-se na intuição de que a
adoração divina que a Igreja faz na celebração dos sacramentos por Cristo, com
Cristo e em Cristo, bem como na unidade do Espírito, está voltada para dar
“toda honra e glória” ao Pai onipotente (ROSATO, 1999, p. 96).
A insistência em afirmar esta unidade de culto e vida
brota do princípio teológico que Deus é amor. A liturgia, principalmente por
meio dos sacramentos, celebram o amor de Deus, reconhecem mediante os atos
litúrgicos sua grandeza que se manifestou a nós com benevolência. É a
celebração atualoizante do Deus que é amor. As celebrações da Igreja possuem
aspecto comunitário, é o povo de Deus que se reúne para juntos render graças,
louvar e adorar ao Senhor pelos seus benefícios, e Dele receber a graça
santificante. Este mistério da unidade dos cristãos entre si, fruto do batismo,
manifesta a própria unidade da Trindade, cuja relação intratrinitária é amor.
Mais ainda. Quando o Senhor Jesus reza ao Pai que
todos sejam um..., como nós somos um (Jo 17,21-22), abre-se perspectivas
inacessíveis a razão humana, sugere alguma semelhança entre a união das pessoas
divinas e a união dos filhos de Deus na verdade e na caridade. Esta semelhança
manifesta que o homem, a única criatura na terra que Deus quis por si mesma,
não pode se encontrar plenamente se não por um dom sincero de si mesmo (GS, n.º
24).
O mistério
trinitário deve, portanto, iluminar a vida dos fiéis, de modo que o seu ser no
mundo seja pautado pela profissão trinitária feita no batismo. A moral deve ser
desenvolvida em conexão com este mistério, sendo assim, o agir do cristão seja
uma explicitação, na vivência, da profissão trinitária, ou seja um amem vitae (Cf. FORTE, 1987, p.7).
Assim, a vida cristã é uma expressão contínua do
“Amém” à glória do Pai por meio de Jesus Cristo e no Espírito Santo: “Porque
todas as promessas de Deus são sim em Jesus.
Por isso, por ele é que dizemos ‘Amém” a glória de Deus, em nós. Aquele
que nos mantêm firmes convosco em Cristo e que nos deu a unção é Deus. Foi Ele
também que nos marcou com seu selo e nos colocou no coração, como um primeiro
sinal, o Espírito” (2 Cor 1,20-22). Para Paulo a própria existência cristã é
uma doxologia ao Pai, baseado no “sacramento de glória”, que é Cristo, e
realizada no “poder da glória” que é o Espírito (...). A partir da sacramentalidade
da própria vida dá glória ao Pai e se torna assim o pressuposto para toda a
oração, para toda participação na Eucaristia, para todo gesto moral, em
benefício do próprio e para toda esperança na felicidade final (ROSATO, 1999,
p. 98).
A
gratuidade do amor divino presente no dinamismo sacramental e comunicado aos
cristãos pode ser este elemento essencial e determinante para que a práxis
cristã contribua com a sociedade. Sabemos que o mundo presente funciona a
partir de mecanismos que valorizam a produtividade, o utilitarismo, sendo
descartáveis aqueles que, segundo a compreensão atual, não podem oferecer algo
para a sociedade.
Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da
lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta
situação, grandes massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem
trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em
si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim
teve início a cultura do «descartável», que aliás chega a ser promovida. Já não
se trata simplesmente do fenómeno de exploração e opressão, mas duma realidade
nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se
vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela,
mas fora. Os excluídos não são explorados, mas resíduos, sobras (EG, 2014, n.º
53).
A vida
sacramental, deste modo precisa ser transportada para a vida cotidiana de cada
fiel. A identidade comunitária, a familiaridade, o amor, a relação
interpessoal, a liberdade, a solidariedade, elementos presentes na celebração
litúrgica podem ajudar o mundo a encontrar o seu eixo novamente.
É esse agir
moral dos cristãos que entendemos como epifania dos efeitos da graça. É
mediante as suas ações no mundo que o cristão, estando nesse estado, manifesta
o seu ser transformado pelas as ações benevolentes de Deus que chegaram a ele
principalmente pelos sacramentos. A participação litúrgica dos fiéis, que por
meio da qual rendem um culto a Deus, será tanto mais sincera na medida que este
culto esteja alicerçado em uma vida que louva a Deus com as suas atitudes. É
evidente, como já foi dito acima, que este agir é fruto da graça de Deus, mas o
homem contribui abrindo-se parta os efeitos que ela produz nos seu interior,
que a partir das moções suscitados no seu íntimo é capaz de epifanizá-las em
boas obras.
Na carta aos Romanos, Paulo nos aponta para
esse culto a Deus a partir da própria vida: “Exorto-vos, portanto, irmãos, pela
misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como sacrifício vivo, santo
e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual” (Rm 12,1).
Essa
oferta de si a Deus, externa-se, por conseguinte, através de uma existência
plenamente humana e santa dentro de uma sociedade. Assim como salmo oito, em
que o perfeito louvor é dado pelos lábios dos mais pequeninos, o culto
espiritual a Deus através das ações no mundo pressupõem a clareza de
compreensão que a vontade de Deus se realiza não mediante a atos
extraordinários, mas através dos acontecimentos simples do cotidiano. Tal qual
é a liturgia, sóbria, breve, marcada pela solene repetição, assim deve ser a
vida do fiel, o cotidiano com a sua simplicidade conduzida pela graça que o
inspira como nova criatura (Cf. 2Cor 5,17), fazendo de si mesmos uma forma de
culto. A vida se torna uma liturgia, uma continuação dos mistérios celebrados.
A autodoação de Cristo celebrada nos sacramentos é assumida como estrutura
interna, de modo a ser louvor do Pai na medida que se age de acordo com essa
graça interiorizada. O cristão é uma doxologia viva (Cf. ROSATO, 1999, p.
102-103).
“Pode-se afirmar, portanto, que os sacramentos da
Igreja, como atos realizados na unidade do Espírito e exercidos por Cristo, com
Cristo e em Cristo para prolongar seus valores na história, fortalecem a
integridade moral de cada cristão como culto espiritual e vice-versa (ROSATO,
1999, p. 104)”.
Essa
graça da vida divina em nós recebida pelos sacramentos é que nos une a Deus,
somos divinizados. A vida humana natural que em si já manifestava um grau de
união com Deus pelo fato de sermos criados a sua Imagem, a Pessoa do Verbo, é
elevada ao sobrenatural, justamente, pela encarnação do Verbo, sua morte em
ressurreição. Por isso,
O cristianismo é mais de que um sistema ético (...)
o Novo Testamento e Os Padres da Igreja consideram Cristo bem mais do que um
“profeta” ou um grande “Mestre”. Como Filho de Deus e Segundo Adão, ele é a
Cabeça e a Vida de todo o gênero humano e, como tal, é o princípio do qual
fluem para as nossas almas toda a força e a luz que nos restauram na semelhança
divina e nos fazem filhos de Deus, capazes de conhecer e amar a Deus à luz da
contemplação e de glorificá-lo na perfeita caridade para com as demais pessoas.
Jesus não apenas nos ensina a vida cristã, Ele a cria em nossas almas pela ação
de seu Espírito. Nossa vida Nele não é questão de mera boa vontade ética. Não é
mera perfeição moral. É uma realidade espiritual totalmente nova, uma
transformação interior (MERTON, 2006, p. 81).
Dito de outra
forma, dizemos que é a vida eterna já começada.
Nosso Senhor, de fato, diz seis vezes, no quarto
Evangelho: “Quem crer em mim, tem a vida
eterna” (Jo. 3,36; 5,24 e 39; 6,40, 47 e 55). Não somente ele a terá mais
tarde, se perseverar, mas em certo sentido já a tem (...). O que nos quer fazer
entender Nosso Senhor, afirmando tantas vezes: “Quem crer em mim, tem a vida eterna”? Ele quer dizer: Quem crê em
mim com fé viva, unida a caridade, ao amor de Deus e ao próximo, tem a vida
eterna começada. Quem crer em mim, tem em germe uma vida sobrenatural idêntica,
no seu fundo, à vida eterna (GARRIGOU-LAGRANGE, 2011, p. 26).
Essa
transformação interior realizada em nós nos permite viver todas as realidades a
partir da ótica divina. O mundo criado, a sociedade com suas relações são
sinais da benevolência divina e dom concreto para o homem, como foi dito no
segundo capítulo, são dignos de receberem uma berakah, ou seja, proferir uma benção sobre a realidade na qual
está inserido. Esse louvor que é o reconhecimento do que Deus é (bondade,
justiça, misericórdia, amor).
Reverenciar e honrar o que é superior (...). É um ato de pura justiça, venerar Aquele que
é a grandeza excelsa e magnificência absoluta, ao mesmo tempo, é um, ato pelo
qual se aperfeiçoa aquele que presta tal homenagem (...) Louvar a Deus é
elevar-se até o lugar onde está a razão de sua existência (GUARDINI, 2018, p.72).
Mas,
tomando a definição acima de louvor enquanto um honrar a Deus, seria muito
restrito entende-lo apenas enquanto um modo de oração. A primeira epístola de
João afirma: “Não amemos com palavras nem com a língua, mas com ações e com
verdade” (1Jo 3,18); “Amados, amemo-nos uns aos outros, pois o amor vêm de Deus
e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus” (1Jo 4,7); “Se alguém
disser: Amo a Deus, mas odeia o seu irmão, é um mentiroso: pois quem não ama
seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar” (1Jo 4,20). Deste
modo, para que se possa honrar a Deus é necessário que a vida toda da pessoa
possa estar voltada para Deus e, portanto, a sua relação com o mundo e com o
seus semelhantes deve estar embasado nesse amor a Deus que foi derramado em
nosso coração pelo Espírito Santo que nos foi dado (Cf. Rm 5,5). Pela graça
infundida em nós somos capazes de amar com o amor divino. No evangelho de
Mateus Jesus nos diz como será o juízo final em que alguns se ajuntarão a Ele
para conviver eternamente na glória e outros serão excluídos, e o critério para
o julgamento será o amor à Jesus. Entretanto, o drama da narração se concentra
em qual momento se amou ou deixou de ama-Lo, e a resposta de Jesus é simples:
“Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o
fizestes (...) todas as vezes que o deixastes de fazer a um desses mais
pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer” (Mt 25, 39.45). Conclui-se, que
se louva, honra, reverencia a Deus amando todas as suas criaturas,
principalmente, amando o homem que é imagem e semelhança de Deus - o ápice da
criação - e, por isso, podemos afirmar que, “Laus Dei, caritas est”.
Por fim, essa
vivência da vida na graça podemos chama-la de mística. No senso comum, o
místico é aquele que possui dons extraordinários, que desafiam as leis da
natureza, entretanto, estas “manifestações” não são critérios para identificar
um místico. O místico em sentido cristão, é aquele que deixou ser encontrado
pela graça de Deus, cujo ser foi transformado interiormente e, por isso, que a
sua vida cotidiana, com tudo o que ela comporta, revelam o Deus que habita dentro
de si através da vivência das virtudes teologais da fé, da esperança e da
caridade, sendo a caridade a maior das virtudes. A natureza do homem elevada ao
estado sobrenatural se conhece pelas obras, estas são epifanias da graça. Do
mesmo modo que se conhece que uma arvore é boa pelos seus bons frutos, assim se
conhece um místico: são pelas suas obras de santidade que se reconhece a vida
divina como seiva que nutre o seu ser.
Deste modo, só é possível viver louvando a Deus, que é a nossa razão de
ser, na medida que o louvamos com a vida unida a Ele.
CONCLUSÃO
A graça de Deus é a manifestação do
seu ser na história. Em outros termos, podemos dizer que é a ação benevolente
de Deus que busca revelar o seu amor aos homens. Diante dessa graça que se
revela na História da Salvação, o homem se volta para Deus em atitude de Louvor,
portanto, reconhece a grandeza de Deus, pois, mesmo sendo o totalmente Outro se
preocupa com o homem tratando com carinho e benevolência.
O homem chega ao conhecimento dos
atributos divinos (bondade, misericórdia, amor, justiça) a partir da sua manifestação
no tempo e no espaço (epifania). O ápice da epifania de Deus é a Encarnação do
Verbo sua vida morte e ressurreição, pois a partir da vida do Verbo Encarnado
se conhece mais plenamente o Pai (Cf. Jo 14,9). Esse conhecimento é mais que
simples informação sobre “algo”, essa categoria bíblica remete ao conhecimento
íntimo, dito de outro modo, é o conhecimento que se dá a partir da união
interna que há entre duas partes que estavam separadas. Portanto, a graça que
nos advém pela vida de Cristo, não somente informa a nossa razão, mas nos
transforma ontologicamente, por ação do seu Espírito, e nos coloca na
intimidade da Trindade, para viver segundo a vontade de Deus.
A Igreja atualiza os eventos salvíficos em
suas celebrações e, deste modo, comunica mediante os seus sinais sensíveis a
graça que eles simbolizam, deste modo, a graça sacramental possibilita a
comunhão entre Deus e o homem, portanto, não apenas sana a natureza que foi
ferida pelo pecado, mas ainda a coloca em um estado muito superior à que era
vivida por Adão. Em Cristo pelo Espírito Santo somos divinizados.
O Louvor do homem é atitude do homem
maduro que sabe olhar tudo que envolve sua vida a partir da ótica divina, ou
seja, a graça (epifania do ser de Deus) agindo em seu interior faz com que suas
faculdades naturais sejam sobrenaturalizadas e, portanto capaz de relacionar
com Deus, consigo mesmo e com o próximo de um modo novo: é capaz de amar com o
amor que foi derramado em seu coração pela ação do Espírito (Cf. Rm 5,5).
O louvor mais excelso é o que se realiza
na Sagrada Liturgia, pois este encontra sua fonte e motivação nas graças
advindas pelo ápice da epifania da graça, a vida de Cristo, que são atualizadas
na celebrações litúrgicas. Esse louvor litúrgico implica uma dimensão moral. A
celebração do amor de Deus mediante as ações litúrgicas deve nos conduzir a uma
vida que seja concorde com o que se reza. A vida cotidiana do homem, com todas
as suas relações, portanto, deve epifanizar a graça que o transformou. É a vida
do homem unido a Deus pela graça, portanto, o homem divinizado que louva a
Deus. Conforme Santo Irineu de Lião, a glória de Deus é o homem vivo, e a vida
do homem é a participação na vida divina que nos advém pela graça. Doravante,
as ações humanas epifanizam a graça que o transformou. A graça é semente de
glória.
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[1] Mircea Eliade (Bucareste, 9 de março de 1907 — Chicago, 22 de abril de 1986) foi um professor, cientista das religiões, mitólogo, filósofo e romancista romeno, naturalizado norte-americano em 1970.
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