sábado, 6 de abril de 2013

“Piedade e Louvor de Deus”


“Piedade e Louvor de Deus”

            Se há algo fundamental sobre o carisma salvista é a piedade, muitas vezes incompreendida ou desprezada, por ser confundida com outras atitudes humanas que tem aparência de piedade e não o são.
            A piedade na Sagrada Escritura é sebomai ou eusebeia, que na raiz quer a ideia de recuar, isto é, um temor reverencial pelo qual reconhecemos a grandeza da divindade. Na língua grega as palavras referentes à razi seb- transmitem a ideia de devoção ou religiosidade. No Antigo Testemento a piedade (eusabeia e cognatos) é trabalhada pelo verbo yare, temer. Como nas passagens:
“O temor do Senhor é o princípio do saber, mas os loucos desprezam a sabedoria e o ensino”. (Prov. 1, 7);
“Repousará sobre ele o Espírito do Senhor, o Espírito de sabedoria e de entendimento, o Espírito de conselho e de fortaleza, o Espírito de conhecimento e de temor do Senhor”. (Is 11, 2);
Sobre o rei Josias e sua reforma religiosa, assim é dito: “Foi divinamente destinado a levar o povo à penitência, e robusteceu a piedade numa época de pecado”(Eclo 49, 3).
Sobre o Patriarca Jacó, o texto do Livro da Sabedoria diz textualmente que foi a sabedoria, que o preservou dos perigos, mas uma importante ligação é que a sabedoria em Deus não é conhecimento somente, mas conhecer a vontade de Deus para ter uma vida reta, por isso o texto afirma que a piedade é mais forte que tudo: “ela (a sabedoria) o protegeu contra seus inimigos e o defendeu dos que lhe armavam ciladas; e no duro combate, deu-lhe vitória, a fim de que ele soubesse quanto a piedade é mais forte que tudo”. (Sb 10, 12).
“Na LXX, o composto negativo de asebes é empregado como sinônimo de adikos “ímpio”, “injusto” e descreve tanto uma ação individual quanto a atitude dos homens ao desviarem-se de Deus”.[1]
No Novo Testamento:
Em 1 Tm 3, 16, no pequeno hino Cristológico, a manifestação de Cristo é caracterizada pela manifestação do mistério da piedade.
Ele, Jesus, nos dias da sua carne, tendo oferecido, com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte e tendo sido ouvido por causa da sua piedade”.[2] É pela sua piedade, ou como na tradução litúrgica, pela sua entrega a Deus que Jesus foi ouvido, sua submissão filial que nos traz a salvação na carne. Em 2 Pd 1, 3; 1, 6; 1, 7; 3, 11;  a piedade é colocada como característica cristã.
Um texto que demonstra claramente o que é piedade é Jo 9, 31, no contexto do cego de nascença, no qual está em jogo diante da Sinagoga a divindade ou não de Jesus, essa passagem assim quer demonstrar de onde veio a cura pelo que era cego: “Sabemos que Deus não atende a pecadores; mas, pelo contrário, se alguém teme a Deus e pratica a sua vontade, a este atende”.[3] O verbo é theosebes, isto é, aquele que se submete a Deus mas na linguagem do NT, por piedade, por amor filial, a este Deus atende. O piedoso nunca é o servo que tem medo servil e escravista (cf. Mt 25, 24) e nem o mago que quer submeter a Deus e o poder divino ao seu próprio querer e prazer (cf. At 8, 9-13).  
            No ambiente latino, a piedade, caracterizava não só os sentimentos, mas também os comportamentos do inferior em relação a seu superior. Principalmente no ambiente religioso, o homem piedoso demonstrava que sabia relacionar-se convenientemente com a divindade. A pietas devia distinguir as relações que os membros da família mantinham com o pater famílias e por conseqüência com toda e qualquer autoridade. No ambiente cristão a piedade a orientação não é somente horizontal, mas principalmente vertical, sua orientação ascendente, uma atitude de Deus com relação ao homem, em vez de uma atitude do homem em relação a Deus. Em primeiro lugar, Deus é o piedoso, Ele tem uma dedicação paterna aos seus filhos. A partir dessa piedade de Deus, cujo tipo é o Cristo, o ser humano vai desenvolvendo sua piedade.[4]
            Para atingir não só um sentimento, mas uma verdadeira vida piedosa surgem os exercícios de piedade, que advém da passagem de São Paulo a Timóteo: “Mas rejeita as fábulas profanas e de velhas caducas Exercita-te, pessoalmente, na piedade. 8 Pois o exercício físico para pouco é proveitoso, mas a piedade para tudo é proveitosa, porque tem a promessa da vida que agora é e da que há de ser”. [5] A partir daí, a visão cristã é que essa piedade deve ser exercida (gumnaso), como um atleta num ginásio, disso também há toda uma relação com a ascese. Portanto, o exercício da piedade deve estar em ordem à salvação.
Exercícios de piedade são diversos, alguns exemplos:

1.      Relacionados à Liturgia, à Liturgia da Horas e os exercícios de Piedade Eucarística. Como bem traz o “Diretório sobre piedade popular e liturgia - Doc. 12. Princípios e orientações. Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos’.

2.      Relacionados à Sagrada Escritura. Lectio Divina e orações bíblicas;

3.      Santo Rosário;

4.      Via Sacra;

5.      Manual de Indulgência e tudo o que a Igreja Católica aponta como caminho dos exercícios de Piedade.

6.      Novenas;

7.      Exercícios Penitencias.

8.      Advindos da Renovação Carismática Católica: orar em línguas, intercessão, canções, Batismo no Espírito Santo, Tardes de Louvor, Cercos de Jericó etc.

9.      E muitos outros que a piedade popular vai criando.


Primeira consideração em diferenciar a piedade, como submissão amorosa através da busca de sua vontade salvífica e realizá-la na própria vida e na dos outros, dos exercícios de piedade que nos ajudam nessa submissão. Segundo, é impossível aqui traçar toda a história da piedade, porém o que tantas vezes tratamos com relação ao carisma do louvor de Deus há tendências errôneas que devem ser extirpadas da vida de piedade.

Piedade baseada numa hipocrisia rigorista
Piedade baseada numa hipocrisia laxista
Essa tendência é teocêntrica, despreza toda a dimensão humana da piedade e do seu exercício. Foi que aconteceu muitas vezes em correntes como o quietismo, o pietismo, o metodismo, etc. Valoriza-se a relação com Deus num desprezo pelo humano de tal forma que os exercícios de piedade se desvinculam do ser humano e da sua salvação, criando os famosos estereótipos que se veem nas artes, a pessoa “piedosa” e que é racista, discriminatória, falsa etc. Valoriza-se o aspecto exterior da piedade, como Jesus alertou em Mt 6, 5ss, a pessoa quer ser reconhecida pelos outros, por isso supervaloriza os trajes, as posturas, os livros, a aparência de piedade, os sentimentos, orações adocicadas e sentimentais, mas que vai infundindo cada vez mais uma imagem de Deus da qual se deve ter pavor e terror e não aproximação.
Essa tendência é antropocêntrica, quer um relacionamento com Deus, mas sua dimensão é extremamente horizontal. A valorização individualista dos exercícios de piedade, desprezando todo o patrimônio da Igreja Católica em matéria de piedade. Tal tendência quer valorizar a piedade individual, semelhante ao rigorista, só que esta não se prende aos exercícios de piedade, mas ao sentimento que uma piedade individualista quer proporcionar ou na idolatria da necessidade humana. Dessa tendência muitas vezes se apresenta num neo-pelagianismo, pelo qual a piedade é somente um estado de espírito pelo qual se quer atingir a Deus. Muitas vezes se afirma: “não preciso rezar, mas rezo pelas minhas obras”. Portanto, a base do relacionamento com Deus não é o Espírito Santo, mas a própria individualidade e o que se faz, num princípio bem ativista.

            A verdadeira piedade cristã é cristocêntrica, como no dizer de Santa Teresa de Jesus, uma piedade orante um “tratar de amizade – estando muitas vezes tratando a sós – com quem sabemos que nos ama” (V 8, 5), oração que não é pensar muito, mas amar muito (M IV, 1, 7), pois não somos anjos (V 22, 10) e a Sacratíssima humanidade de Jesus é o caminho da verdadeira oração, como afirma Teresa: “vi com clareza, e contunei a ver, que Deus deseja, para O agradarmos e para que nos recebamos por meio dessa Humanidade sacratíssima (de Jesus), em que sua Majestade se deleita”       (V 22, 5). Pois “afastar-se de tudo o que é corpóreo e viver sempre abrasado de amor são coisas próprias de espíritos angélicos, e não dos que vivemos num corpo mortal (...) Que grave engano afastar-se propositalmente de todo o nosso bem e remédio, que á sacratíssima Humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo.” (M VI, 7, 6) Por Cristo, no Espírito entramos em comunhão com o Pai. A Piedade deve ser cristocêntrica e trinitária.
Nosso Fundador, Pe Gilberto Maria Defina, sjs, tinha suas virtudes e defeitos, pois Deus o fez um ser humano. Porém, o que não se pode dizer do Pe Gilberto é que ele não era piedoso. Para falar a verdade, a primeira virtude que vem em minha mente com relação ao nosso Pai Fundador é que ele era um homem piedoso. E somos convidados a ver nele o Cristo, pois vejo que ele conseguiu um equilíbrio perfeito com relação à piedade. Pe Gilberto amava os exercícios de piedade, tanto que assim os quis condensar no Manual de Oração, mas não só, o espírito de piedade no próprio exercício da Liturgia e o respectivo esplendor litúrgico, e tudo o que ele quis infundir pelo Quarto Voto, de Fidelidade ao Santo Padre, pelo qual se quer uma submissão à vontade de Deus através das autoridades da Igreja. Todo o sofrimento para fundar a Fraternidade foi um desafio à sua piedade, e teve uma morte piedosa como se dizia. Ele conseguiu ter nos exercícios de piedade a busca da vontade de Deus, e creio que nós salvistas para ter uma vida que louva a Deus, devemos ter nos exercícios de piedade uma fonte para buscar essa vontade e unidos a ela praticar obras que louvam a Deus. A própria experiência do fundador no Batismo do Espírito Santo, ele mesmo muitas vezes o caracterizou pela vivência de uma piedade mais profunda, que unisse a experiência da Renovação Carismática Católica com todo o patrimônio dos exercícios de piedade da Igreja Católica, numa vida intercessória, salvista o antigo vivido de maneira nova. E, contemplando esses anos de salvista, pessoamente vejo que aqueles que permanecem são aqueles que tem esse viés de piedade do Fundador, esses salvistas conseguem verdadeiramente vislumbrar o carisma salvista e vivê-lo. Por isso, Pe Gilberto é o modelo a ser seguido, como salvista, piedoso e carismático.



[1] L. COENEN; C. BROWN. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1967, p. 1663.
[2]Sociedade Bíblica do Brasil. (2003; 2005). Almeida Revista e Atualizada - Com Números de Strong (Hb 5:7). Sociedade Bíblica do Brasil.
[3]Sociedade Bíblica do Brasil. (2003; 2005). Almeida Revista e Atualizada - Com Números de Strong (Jo 9:31). Sociedade Bíblica do Brasil.
[4] DICIONÁRIO DE ESPIRITUALIDADE. São Paulo: Paulus, 2005, p. 372ss.
[5]Sociedade Bíblica do Brasil. (2003; 2005). Almeida Revista e Atualizada - Com Números de Strong (1Tm 4:9). Sociedade Bíblica do Brasil.

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