“Piedade
e Louvor de Deus”
Se há algo fundamental sobre o carisma salvista é a
piedade, muitas vezes incompreendida ou desprezada, por ser confundida com
outras atitudes humanas que tem aparência de piedade e não o são.
A piedade na Sagrada Escritura é sebomai ou eusebeia, que
na raiz quer a ideia de recuar, isto é, um temor reverencial pelo qual
reconhecemos a grandeza da divindade. Na língua grega as palavras referentes à
razi seb- transmitem a ideia de devoção ou religiosidade. No Antigo Testemento
a piedade (eusabeia e cognatos) é trabalhada pelo verbo yare, temer. Como nas
passagens:
“O temor do Senhor é o princípio do saber,
mas os loucos desprezam a sabedoria e o ensino”. (Prov.
1, 7);
“Repousará sobre ele o Espírito do Senhor, o Espírito de
sabedoria e de entendimento, o Espírito de conselho e de fortaleza, o Espírito
de conhecimento e de temor do Senhor”. (Is 11, 2);
Sobre o rei Josias e sua reforma religiosa, assim é dito:
“Foi divinamente destinado a levar o povo à
penitência, e robusteceu a piedade numa época de pecado”(Eclo 49, 3).
Sobre o Patriarca Jacó, o texto do Livro da
Sabedoria diz textualmente que foi a sabedoria, que o preservou dos perigos, mas
uma importante ligação é que a sabedoria em Deus não é conhecimento somente,
mas conhecer a vontade de Deus para ter uma vida reta, por isso o texto afirma
que a piedade é mais forte que tudo: “ela (a sabedoria) o protegeu contra seus
inimigos e o defendeu dos que lhe armavam ciladas; e no duro combate, deu-lhe
vitória, a fim de que ele soubesse quanto a piedade é mais forte que
tudo”. (Sb 10, 12).
“Na LXX, o composto negativo de asebes é empregado
como sinônimo de adikos “ímpio”, “injusto” e descreve tanto uma ação individual
quanto a atitude dos homens ao desviarem-se de Deus”.[1]
No Novo Testamento:
Em 1 Tm 3, 16, no pequeno hino Cristológico, a
manifestação de Cristo é caracterizada pela manifestação do mistério da
piedade.
“Ele, Jesus, nos dias da sua carne, tendo oferecido, com forte clamor e
lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte e tendo sido ouvido
por causa da sua piedade”.[2] É pela sua piedade, ou como na
tradução litúrgica, pela sua entrega a Deus que Jesus foi ouvido, sua submissão
filial que nos traz a salvação na carne. Em 2 Pd 1, 3; 1, 6; 1, 7; 3, 11; a piedade é colocada como característica
cristã.
Um texto
que demonstra claramente o que é piedade é Jo 9, 31, no contexto do cego de
nascença, no qual está em jogo diante da Sinagoga a divindade ou não de Jesus,
essa passagem assim quer demonstrar de onde veio a cura pelo que era cego: “Sabemos que Deus não atende a pecadores; mas, pelo contrário, se alguém teme a Deus e pratica a sua vontade, a
este atende”.[3] O verbo
é theosebes, isto é, aquele que se submete a Deus mas na linguagem do NT, por
piedade, por amor filial, a este Deus atende. O piedoso nunca é o servo que tem
medo servil e escravista (cf. Mt 25, 24) e nem o mago que quer submeter a Deus
e o poder divino ao seu próprio querer e prazer (cf. At 8, 9-13).
No
ambiente latino, a piedade, caracterizava não só os sentimentos, mas também os
comportamentos do inferior em relação a seu superior. Principalmente no
ambiente religioso, o homem piedoso demonstrava que sabia relacionar-se
convenientemente com a divindade. A pietas devia distinguir as relações que os
membros da família mantinham com o pater famílias e por conseqüência com toda e
qualquer autoridade. No ambiente cristão a piedade a orientação não é somente
horizontal, mas principalmente vertical, sua orientação ascendente, uma atitude
de Deus com relação ao homem, em vez de uma atitude do homem em relação a Deus.
Em primeiro lugar, Deus é o piedoso, Ele tem uma dedicação paterna aos seus
filhos. A partir dessa piedade de Deus, cujo tipo é o Cristo, o ser humano vai
desenvolvendo sua piedade.[4]
Para
atingir não só um sentimento, mas uma verdadeira vida piedosa surgem os
exercícios de piedade, que advém da passagem de São Paulo a Timóteo: “Mas rejeita as fábulas profanas e de velhas caducas Exercita-te, pessoalmente, na piedade. 8 Pois o
exercício físico para pouco é proveitoso, mas a piedade para tudo é proveitosa,
porque tem a promessa da vida que agora é e da que há de ser”. [5] A partir
daí, a visão cristã é que essa piedade deve ser exercida (gumnaso), como um
atleta num ginásio, disso também há toda uma relação com a ascese. Portanto, o
exercício da piedade deve estar em ordem à salvação.
Exercícios
de piedade são diversos, alguns exemplos:
1.
Relacionados à
Liturgia, à Liturgia da Horas e os exercícios de Piedade Eucarística. Como bem
traz o “Diretório sobre piedade popular e liturgia - Doc. 12. Princípios e
orientações. Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos
Sacramentos’.
2. Relacionados à Sagrada Escritura. Lectio Divina e
orações bíblicas;
3. Santo Rosário;
4. Via Sacra;
5. Manual de Indulgência e tudo o que a Igreja Católica
aponta como caminho dos exercícios de Piedade.
6. Novenas;
7. Exercícios Penitencias.
8. Advindos da Renovação Carismática Católica: orar em
línguas, intercessão, canções, Batismo no Espírito Santo, Tardes de Louvor,
Cercos de Jericó etc.
9. E muitos outros que a piedade popular vai criando.
Primeira
consideração em diferenciar a piedade, como submissão amorosa através da busca
de sua vontade salvífica e realizá-la na própria vida e na dos outros, dos
exercícios de piedade que nos ajudam nessa submissão. Segundo, é impossível
aqui traçar toda a história da piedade, porém o que tantas vezes tratamos com
relação ao carisma do louvor de Deus há tendências errôneas que devem ser
extirpadas da vida de piedade.
Piedade baseada numa hipocrisia rigorista
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Piedade baseada numa hipocrisia laxista
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Essa tendência é teocêntrica,
despreza toda a dimensão humana da piedade e do seu exercício. Foi que
aconteceu muitas vezes em correntes como o quietismo, o pietismo, o
metodismo, etc. Valoriza-se a relação com Deus num desprezo pelo humano de
tal forma que os exercícios de piedade se desvinculam do ser humano e da sua
salvação, criando os famosos estereótipos que se veem nas artes, a pessoa “piedosa”
e que é racista, discriminatória, falsa etc. Valoriza-se o aspecto exterior
da piedade, como Jesus alertou em Mt 6, 5ss, a pessoa quer ser reconhecida
pelos outros, por isso supervaloriza os trajes, as posturas, os livros, a
aparência de piedade, os sentimentos, orações adocicadas e sentimentais, mas que
vai infundindo cada vez mais uma imagem de Deus da qual se deve ter pavor e
terror e não aproximação.
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Essa tendência é
antropocêntrica, quer um relacionamento com Deus, mas sua dimensão é extremamente
horizontal. A valorização individualista dos exercícios de piedade,
desprezando todo o patrimônio da Igreja Católica em matéria de piedade. Tal
tendência quer valorizar a piedade individual, semelhante ao rigorista, só
que esta não se prende aos exercícios de piedade, mas ao sentimento que uma piedade
individualista quer proporcionar ou na idolatria da necessidade humana. Dessa
tendência muitas vezes se apresenta num neo-pelagianismo, pelo qual a piedade
é somente um estado de espírito pelo qual se quer atingir a Deus. Muitas
vezes se afirma: “não preciso rezar, mas rezo pelas minhas obras”. Portanto,
a base do relacionamento com Deus não é o Espírito Santo, mas a própria
individualidade e o que se faz, num princípio bem ativista.
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A
verdadeira piedade cristã é cristocêntrica, como no dizer de Santa Teresa de
Jesus, uma piedade orante um “tratar de amizade – estando muitas vezes tratando
a sós – com quem sabemos que nos ama” (V 8, 5), oração que não é pensar muito,
mas amar muito (M IV, 1, 7), pois não somos anjos (V 22, 10) e a Sacratíssima
humanidade de Jesus é o caminho da verdadeira oração, como afirma Teresa: “vi
com clareza, e contunei a ver, que Deus deseja, para O agradarmos e para que
nos recebamos por meio dessa Humanidade sacratíssima (de Jesus), em que sua
Majestade se deleita” (V 22, 5).
Pois “afastar-se de tudo o que é corpóreo e viver sempre abrasado de amor são
coisas próprias de espíritos angélicos, e não dos que vivemos num corpo mortal
(...) Que grave engano afastar-se propositalmente de todo o nosso bem e
remédio, que á sacratíssima Humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo.” (M VI, 7,
6) Por Cristo, no Espírito entramos em comunhão com o Pai. A Piedade deve ser
cristocêntrica e trinitária.
Nosso
Fundador, Pe Gilberto Maria Defina, sjs, tinha suas virtudes e defeitos, pois
Deus o fez um ser humano. Porém, o que não se pode dizer do Pe Gilberto é que
ele não era piedoso. Para falar a verdade, a primeira virtude que vem em minha
mente com relação ao nosso Pai Fundador é que ele era um homem piedoso. E somos
convidados a ver nele o Cristo, pois vejo que ele conseguiu um equilíbrio
perfeito com relação à piedade. Pe Gilberto amava os exercícios de piedade,
tanto que assim os quis condensar no Manual de Oração, mas não só, o espírito
de piedade no próprio exercício da Liturgia e o respectivo esplendor litúrgico,
e tudo o que ele quis infundir pelo Quarto Voto, de Fidelidade ao Santo Padre,
pelo qual se quer uma submissão à vontade de Deus através das autoridades da
Igreja. Todo o sofrimento para fundar a Fraternidade foi um desafio à sua
piedade, e teve uma morte piedosa como se dizia. Ele conseguiu ter nos
exercícios de piedade a busca da vontade de Deus, e creio que nós salvistas
para ter uma vida que louva a Deus, devemos ter nos exercícios de piedade uma
fonte para buscar essa vontade e unidos a ela praticar obras que louvam a Deus.
A própria experiência do fundador no Batismo do Espírito Santo, ele mesmo
muitas vezes o caracterizou pela vivência de uma piedade mais profunda, que
unisse a experiência da Renovação Carismática Católica com todo o patrimônio
dos exercícios de piedade da Igreja Católica, numa vida intercessória, salvista
o antigo vivido de maneira nova. E, contemplando esses anos de salvista,
pessoamente vejo que aqueles que permanecem são aqueles que tem esse viés de
piedade do Fundador, esses salvistas conseguem verdadeiramente vislumbrar o
carisma salvista e vivê-lo. Por isso, Pe Gilberto é o modelo a ser seguido,
como salvista, piedoso e carismático.
[1]
L. COENEN; C. BROWN. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento.
São Paulo: Vida Nova, 1967, p. 1663.
[2]Sociedade Bíblica do Brasil. (2003; 2005). Almeida
Revista e Atualizada - Com Números de Strong (Hb 5:7). Sociedade Bíblica do
Brasil.
[3]Sociedade Bíblica do Brasil. (2003; 2005). Almeida
Revista e Atualizada - Com Números de Strong (Jo 9:31). Sociedade Bíblica
do Brasil.
[4]
DICIONÁRIO DE ESPIRITUALIDADE. São Paulo: Paulus, 2005, p. 372ss.
[5]Sociedade Bíblica do Brasil. (2003; 2005). Almeida
Revista e Atualizada - Com Números de Strong (1Tm 4:9). Sociedade Bíblica
do Brasil.